Filosofia Psicologia

Tempo não é dinheiro, desperdice a vida

Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra
Quem disse que não é para desperdiçar a vida, mas aproveitá-la? O Capital, cujo tempo é dinheiro, e nos quer inteiros e pontuais para produzir? O psíquico está inscrito no tempo, o corpo escorre seus estados no tempo. É urgente pensar o tempo. Pensamos uma temporalidade em que a vida possa fluir no nosso ritmo, no nosso ritmo a gente sabe dançar, mas se a temporalidade é fragmentada ela é facilmente aparelhada por demandas que não as nossas, e aí a vida vai aos trôpegos, torna-se um cansaço. Submetidos a um tempo que não é o nosso ficamos sitiados em estado de procrastinação. Querendo estar o tempo todo sintonizados com o alucinado mercado da produção existencial ofertada pelo capital deixamos de sintonizar nos nossos próprios acontecimentos. Na depressão o tempo é uma sangria gota à gota, na alegria o tempo é uma trilha sonora.  Tempo não é dinheiro, tempo é vida!

O capitalismo é o senhor do tempo.
Mas tempo não é dinheiro.
Dizer que tempo é dinheiro é uma brutalidade.
Tempo é o tecido de nossas vidas.
CANDIDO, A.

*

Nunca antes o advento tecnológico possibilitou tantas máquinas capazes de reduzir semanas, meses e anos de trabalho em questão de dias ou de horas, e nunca antes reclamamos tanto da falta de tempo. Nunca antes estivéramos tão cercados de uma diversidade de objetos com que podemos preencher os nossos lares, e nunca antes nos sentimos tão vazios e entediados em espaços cada vez menores. Em nenhum momento da história tivéramos ao nosso alcance a possibilidade de entrar em contato com a experiência do pensamento através dos livros, das músicas, dos filmes em questão de alguns cliques, e nunca antes o pensamento parece ter sido tão empobrecido e reduzido a opiniões fechadas em si mesmas que se repetem à exaustão. As mudanças são cada vez mais aceleradas e o estado psíquico mais abundante é marcado, sobretudo, por uma certa relação temporal vivenciada como estagnada e vazia, o tic-tac onde nada se cria, o que podemos chamar também de depressão.

Na civilização, a miséria brota da própria abundância. – FOURIER, C., Tratado de associação doméstica e agrícola

Uma das maneiras de o capitalismo capturar nossos fluxos desejantes e direcioná-los aos seus interesses é gerenciando a nossa temporalidade, por isso é fundamental pensá-la fora do viés capitalizado e espacializado nas instâncias do presente, passado e futuro.

Se não percebemos o quanto é importante pensar a temporalidade basta constatar que estamos nos tornando quase que religiosos da tecnologia – dos idiotizados pelas últimas versões dos gadgets aos que esperam das pílulas uma resolutividade diante da impossibilidade de atender a demanda cada vez mais urgente – tempo! – de dever ao gozo (ver Falta e culpa na sociedade do espetáculo) – e, paradoxalmente, estamos cada vez mais sem tempo, esperando que ela, a tecnologia, nos dê mais tempo. Se aproveitar a vida é um mantra contemporâneo é porque estamos nos sentindo cada vez menos vivos esperando por mais vida, e quanto mais somos suscetíveis aos deveres do gozo maior vai ser esse buraco.

Estamos nos shows, nos bares e baladas, nas estreias do cinema, nos comes e bebes da cidade, nos roteiros de turismo mais votados, queremos estar em todos os lugares, mas pouco nos sentimos presentes durante os encontros. Estar em presença exige um corpo vibrátil, intensidades se passam e abrimos possibilidades de criação fortalecedoras, para isso é necessário uma experiência de duração que tem a ver com uma temporalidade da qual nos reconhecemos presentes.

Perceber a duração das nossas experiências no tempo é condição para ficar fazendo a nós mesmos, tecendo-nos com pensamentos e afetos, juntando e esparramando coisas das nossas vivências, nos perfumando com poesias, com lembranças que se misturam com chuvas e ventos, com a matéria da vida, e nos levam a outras lembranças, e somos re-visitados por gestos, sonhos, sons, cheiros, bocas, pessoas, bichos, coisas que vez ou outra passeiam pela nossa alma e nos arrancam um sorriso ou lágrimas de saudade atualizados na experiência de um tempo cuja variação nos promove estados psíquicos que são sempre inéditos ainda que não percebamos.

Não se trabalha apenas 8h diárias, o corpo é organizado e afetado pelo trabalho quase que em tempo integral, portanto, a produção de corpos atordoados com o sentimento de não estar aproveitando a vida não para de aumentar. A fragmentação do nosso tempo interrompida por um corpo que já está em estado de pré-disposição a todo tipo de organização que vem de fora propicia ainda mais o consumo cujo produto é ofertado como experiência de vida que não se tem (ver O publicitário como fabricante de desejos). Ficamos girando nesse carrossel de dívida sem fim com a vida.

Pequenos gestos, pequenos movimentos, pequenas ações diariamente nos são roubadas a partir de uma experiência com o tempo marcada pela paranoia de uma vida que se coloca como objeto de gerenciamento a partir das especulações do grande mercado da existência. A fragmentação da experiência temporal não permite perceber as mudanças qualitativas que sustentam nossas percepções, nossos sentimentos, nossos afetos, enfim, um certo sentimento de presença durante os acontecimentos, pelo contrário, sentimo-nos ausentes e na ânsia de aproveitar a oferta de experiências o corpo é desfigurado junto aos acontecimentos.

Deleuze e Guattari nos falam de um espaço-liso e um espaço-estriado que não são separados entre si, há uma correlação, um atravessa o outro e ainda assim há uma diferença de natureza entre eles, podemos pensar que uma temporalidade fragmentada é estriada pelo Capital que institui secções, cortes, compartimentos, uma logística para que o desejo não passe sem antes prestar contas ao aparelhamento do estado, diferente de uma temporalidade lisa que nos possibilita experienciar um plano de intensidades vivido como variação contínua da potência.

Há muita subversividade em contemplar um céu estrelado quando templos de consumo se oferecem como experiências de vida.
Ficar sem fazer nada… Por que não achamos isso uma delícia? Alguém tem sempre um programa para ocupar o tempo em que não se faz nada. Inventamos o lazer, um tempo que se aproveita para consumir e produzir. Ficar esperando sem fazer nada? Nem pensar, sacamos nossos computadores-de-bolso repletos de apps para passar o tempo. Temos um substantivo próprio para demostrar o quanto não suportamos tempo livre, temos passatempos para não ter que lidar com o que somos (ver Fazer muitas coisas para não ter que lidar com o que somos), para pendurar nosso estado de insatisfação diária no cabide da esperança, para não ter que pensar, para…

Se dizemos que o tempo é o tecido de nossas vidas é porque não há nada em nós que não seja tempo, o nosso psíquico [o corpo] está inscrito no tempo, um tempo do qual raramente pensamos porque não é o tempo contado pelos relógios, é um tempo qualitativo, de passagens de estados. Quando os relógios mecânicos começaram a marcar o tempo do alto das igrejas a fruição da vida passou a ser questão de controle, a batida dos sinos implicou em múltiplas formas de organizar e controlar as relações humanas. Tempo para dormir e acordar, comer e amar, brincar e trabalhar, jejuar e orar etc.,Deus se torna guardião do tempo e prescreve hora certa para tudo. Hoje toda a vida passa pela organização econòmica, o Capital é guardião do tempo.

Se de um lado temos a necessidade de vivenciar uma temporalidade que nos é própria, no nosso ritmo, temos, de outro, um tempo que nos constrange, o tempo da produtividade aparelhado pelo Capital. E quanto mais separados de uma temporalidade própria mais somos coagidos pelo tempo da produtividade. APROVEITE O SEU TEMPO!-, coage-nos a agenda econômica que avança em velocidades que se tentarmos seguir iremos, inevitavelmente, perder o compasso e seremos arrastados pelas demandas, ficamos perdidos e experienciamos o que chamamos de procrastinar.

Procrastinar é a experiência do corpo rachado entre a própria temporalidade e a temporalidade da demanda, ficamos sem saber o que fazer e somos sitiados por um estado de angústia, a temporalidade se torna tão fragmentada que ficamos, literalmente, perdidos. Eis porque o tempo é o tecido de nossas vidas, tempo é por onde percorre o nosso desejo, se a nossa temporalidade é entulhada por demandas o desejo fica à mercê do desejo do outro, ficamos reduzidos a uma vida de faltas e culpas (ver Falta e culpa na sociedade do espetáculo).

A maneira que costumamos pensar o tempo, situado no espaço (demarcado por presente, passado e futuro) não se alinha ao nosso psiquismo que nos situa em um tempo de mudança qualitativa. Bergson é filósofo essencial para pensar esse tempo de natureza qualitativa, e não somente espacial como estamos acostumados. A duração é um dos seus conceitos mais belos, capaz de irradiar mudanças significativas em nossas vidas. A duração seria uma condição essencial para forçar aquele instante que nos é significativo no acontecimento, assim como é ela que nos permite uma experiência com o tempo que não seja marcada pela fragmentação que interrompe a criação de um tecido acolhedor. Nesse sentido, podemos falar que não há criação sem a experiência da duração.

Na alegria parece que cavalgamos junto às asas de um Pégaso, já na depressão a sangria é lenta no tic-tac de um tempo pastoso que não flui. Uma temporalidade da qual presente, passado e futuro estão fluindo ao mesmo tempo conforme a dinâmica dos encontros com o mundo é a temporalidade que nos interessa para tecer as nossas vidas. Quando os nossos estados psíquicos são forçados a passar pela escala do tempo produtivo a gente passa a frequentar a agenda dos compromissos e das tarefas demandadas, de modo que somos organizados de fora, não queremos isso.

O seu dia foi produtivo hoje? – é a pergunta que o capital, enquanto grande administrador da vida, se interessa. E nós queremos que o nosso tempo seja gerenciado de fora? Teremos potência para criar uma vida que não seja totalmente produzida de fora? Inevitavelmente, produzimos e somos produzidos, mas se ser produzido é o dominante em nós seremos tornados corpos dóceis, transformados em mera matéria-prima, disciplinados para a pontualidade da agenda do capital cujo tempo é dinheiro e nos diz para não desperdiçar a vida. Se o tempo é dinheiro a gente gasta a vida para perder a liberdade na ilusão de que iremos conquistá-la. Mas tempo não é dinheiro, tempo é vida!

(…) a única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta. E é miserável gastar a vida para perder liberdade. MUJICA, J., documentário Human

Não desperdice a sua vida! – Quem disse que a vida não é para ser desperdiçada? A vida não faz economia, a vida é um desperdício constante. O ser quer perseverar, a vida em nós quer expandir, ela não faz balanço entre o que se tem e o que não tem para se efetuar, essa contabilidade já é uma vida capturada pelo capital que nos coloca em débito com os acontecimentos. Tempo que não pode ser desperdiçado é tempo capitalizado e precisa ser aproveitado pelo capital.

Na posição de débito a gente não age, os fluxos expressivos passam a depender de licença (do Outro) para expressar, e ficamos à espera, à espera de sermos amados, de sermos desejados, de sermos autorizados… A vida gerenciada pelo capital que não quer desperdiçar, ela quer conservar para se manter produtiva, sempre produtiva, tornar-nos alertas, pontuais, com força máxima para pode ganhar, ganhar, ganhar e depois gastar. Desperdício só se for de dinheiro!

E teremos tempo para pensar se há uma oferta gigantesca de pensamentos para pensarem por nós? Teremos tempo para desperdiçar? Teremos tempo que não seja capitalizado para que o dominante em nós seja uma vida criada de acordo com a nossa ritmicidade?

Se tem algo que não se faz sem tempo livre é pensar, e pensar é gerar matéria para tecer a própria vida no aconchego de uma temporalidade que experimentamos no nosso ritmo, e no nosso ritmo a gente dança. No tempo ocupado, a dádiva do homem moderno em levar uma vida repleta de tarefas dispostas em valor produtivo, o ritmo é dissonante com aquilo que somos, já não podemos dançar e, aos trôpegos, a vida é um cansaço.

Se não gozamos de uma temporalidade rítmica, se o Capital é o guardião do nosso tempo estaremos sujeitos a seguir um tempo que nos arrasta conforme a agenda das demandas dominantes.

Já ouvimos dizer que mente vazia é oficina do diabo. Deus já foi guardião do tempo, mas dizer o Capital já se compreende Deus – Deus se tornou dinheiro, disse Agamben -, o Capital é o guardião do tempo e o tempo é dinheiro. Para Deus a preguiça era pecado, para o Capital a ociosidade é uma subversão, mas para quem o tempo é vida a ociosidade e a preguiça se fazem urgentes enquanto planos de criação.

Ocupemo-nos de ociosidade, ocupemo-nos de preguiça, a preguiça e a ociosidade são estados de tesões que eclodem novos céus, ficar com preguiça se roçando com poemas, com músicas, com pensamentos, com as coisas do mundo, ficar com preguiça junto a alguém que gostamos, ficar com preguiça com alguém que amamos… duas pessoas que se gostam, juntas e com preguiça, é como dois barris de pólvora, roça-se daqui e dali e uma faísca de bem-estar vai incendiando e deixando tudo à flor da pele.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
GERALDO VANDRÉ, canção Pra não dizer que não falei de flores

Assine nossa newsletter


Imagem: SEURAT, G. Tarde de domingo na Ilha de Grande Jatte (1886)

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.