Literatura

Masturbar-se com o universo ou sobre um deus spinozano

Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Os devaneios e os delírios
devaneiam e deliram
sobre o mundo do sério.

Devaneio e deliro
para saborear o mundo,
sem se importar se bate
com o conhecimento do sério.

 

*

Às vezes vejo belezas que em geral ninguém vê, misturo o ar, a água, o fogo e os sonhos, a Terra aos devaneios da vontade, a poética e o espaço – talvez porque fui uma estranha criatura que matou aulas de educação física quando adolescente e se refugiou na biblioteca para ler Bachelard, e não entendi nada, e não entendendo roubei algumas coisas que funcionaram em mim e deixaram de ser Bachelard, arranquei-lhe suas barbas científicas e na arte do devaneio fiz atrasos consideráveis no que diz respeito ao progresso de uma vida voltada para uma carreira sólida e objetiva de mundo – atrasar-se à velocidade frenética do mundo é uma arte! Senti que meus olhos, meus ouvidos, meu nariz, minha boca, em suma, a maneira de sentir, mudaram, e na mudança outros mundos, estranhos mundos, se abriam em mim. Nunca habitei nenhum deles senão por alguns instantes, e são uma das coisas mais incríveis que descobri, tal como quando a gente descobre a masturbação. Mas em geral a gente descobre só a masturbação fálica. É possível masturbar o corpo e seus sentidos junto a um universo cuja carne somos carnes, um universo com estrelas, céus, flores, pássaros, nuvens, cheiros, sons, cores, velocidades, chuvas, ventos, rios, peixes, …, cuja carne somos carne.

Erotizar o universo é masturbar-se com o “deus-natureza” spinozano, é a arte de fazer amor com uma infinidade de outros corpos, aumentamos nossas possibilidades de gozar alegria em variações de beleza e amor – e também aumentamos nossas possibilidades de desamor, entristece mas seguimos acreditando nesse deus porque sentimos que ele nos toca – e como nos toca!

A descoberta do “deus-natureza” spinozano equiparou-se à descoberta da masturbação, um nos leva a descobrir que podemos ser causa do próprio gozo, outro nos leva a descobrir que podemos ser causa da própria alegria, descobrimos ainda que o gozo gozado junto de quem nos alegra é mais intenso, e que a alegria alegrada junto de quem nos alegra também é mais intensa.

– Se a gente soubesse, patrão, o que dizem as pedras, a chuva, as flores! Talvez elas chamem, talvez elas nos chamem e nós não as escutemos. Quando é que as pessoas começaram a ouvir? Quando teremos os olhos abertos para ver? Quando abriremos os braços para abraçar todas as pedras, as flores, a chuva e os homens? Que diz você disso, patrão. E os livrecos, o que dizem? Zorba, o Grego – Níkos Kazantzákis
Com um deus como causa de si e de todas as coisas tudo passa a ter potência expressiva, não através dos significados puros que nos fazem desencontrar dos corpos, mas através de expressões de forças. Então passamos a desenvolver uma semiótica das sensações capaz de se articular com linguagens que se articulam fora do verbo, e então passamos a dizer que o vento, o mar, as florestas, os animais, as pedras, todos os corpos com que cruzamos, também falam, e passamos a escutá-los, e nesses fluxos de forças vibrações podem ressoar entre os corpos.

Um deus pianista que toca, e quando toca faz vibrar as cordas quânticas do universo – universo cuja carne somos carne -, e os corpos dançam entre si quando um mesmo ritmo os compõem, e se alegram. .

Noite estrelada sobre o Ródano , Van Gogh

Na noite estrelada sobre o Ródano de Van Gogh vejo um homem e uma mulher entrelaçados entre si e com a noite, as estrelas, as águas escuras, a terra, a cidade, as luzes da cidade, o silêncio e o cochichar das águas… estão fazendo amor com os corpos do universo, e Van Gogh, com o pincel também acaricia corpos do universo, todos corpos nascidos de um mesmo barro.

… erotizar o universo. Daí nascem estranhas – e deliciosas – sensações. Você já deixou a fresta da janela aberta nas frias noites de outono só para escutar os ventos entrarem sibilando? – que música! Você já imaginou que estaria acontecendo nesse exato momento lá nos confins do universo? E nos confins dos fundos dos mares, lá onde nenhuma centelha de luz chega? E como seria flutuar pelas galáxias? E fazer amor flutuando pelos braços infinitos do universo? Você já se perdeu de si observando as mariposas dançando ao redor de uma luz amarelada enquanto caminha sob o véu de neblina cobrindo uma noite sem lua? Já viu uma joaninha passeando pelas folhas orvalhadas logo ao acordar e sentiu um sopro diferente no estômago? – São estranhas e possíveis maneiras do deus spinozano nos soprar.

Mas nem por isso. Sopra-nos também quando nos deparamos com adoráveis pernas e cabelos e olhos e boca e jeito de andar e falar e olhar… e como sopra! Pelas páginas de um livro, pelas escaladas de montanhas, pelas caminhadas por florestas e ruas do bairro, pelas ondas sonoras… – certa vez, ouvindo a nona de Beethoven perdi o controle do automóvel e entrei no canteiro de uma movimentada avenida, pessoas e mais pessoas se agruparam para ver o que tinha acontecido enquanto eu saia do carro com a cara de que o clímax fora interrompido, eles não entenderiam se eu dissesse que o sopro divino tinha sido tão forte que derrubou a geometria do meu mundo, acabei por dizer que o veículo morreu e travou a direção enquanto pensava que psicotizar sem cair nas armadilhas da saúde mental é uma delícia.

Acontecimentos estranhos e inusitados como esses e tantos outros, ou simplesmente só acontecimentos, podem fazer com que sintamos o sopro do divino cuja carne somos carne.

É verdade, é preciso perder um pouco da nossa habitual consciência para que possamos perceber que tocamos e somos tocados pelo deus spinozano, se preferir, em Spinoza, um certo tipo de razão é necessária para que possamos fazer amor com os corpos. Por outro lado, tenho a impressão de que Nietzsche daria uma gargalhada dionisíaca até mesmo diante dessa razão e nos diria para ir se jogar com o corpo – como grande razão. Quando a gente perde ainda mais a consciência podemos abrir rachaduras para que mundos como os de Alice fundem em nós, é preciso descolar as palavras das coisas para que caiamos em buracos como Alice caiu. Perder a consciência aqui é perder as marcas ou tornar a consciência fluida e arejada através da força do esquecimento que nos permite dissolver as crostas de ressentimento. É preciso perder a geometria do espaço e do tempo arquitetados com concreto, aço e finanças para que possamos sentir a vida deslizar como um sonho enquanto estrelas se esparramam pelos movimentos insuspeitos de um universo frio e indiferente às lágrimas e aos risos. Habitar uma temporalidade própria é a primeira condição para que possamos acariciar e ser acariciado pelos sopros do deus spinozano (Natureza) que se manifesta em nós, através de nós e das coisas – e apesar de nós!

Ahhh, companheiros de existência spinozana, não saiam dizendo isso em qualquer lugar, o mundo não está preparado para gozar além de um tempo precoce e um espaço fálico. Para quem acredita em um deus antropomórfico, provavelmente com alguma voz rouca de locutor, trajando um camisolão branco e segurando um cajado, irão acreditar que nós somos os doidos. Nós de fé estética, que acreditamos no mundo, neste mundo da vida, e sentimos ser parte da mesma matéria, nós que nos sentimos, às vezes – às vezes, porque a consciência está presente na maior parte do tempo para nos marcar com as noções de morte – até eternos!

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.