Filosofia

A experiência do Fora: além da interiorização psíquica

olhando o universo
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Há uma falha, uma falha em tudo
É assim que a luz entra.
LEONARD COHEN (Anthem)

O conceito vem de Blanchot. Ventos revigorantes sopraram na Literatura quando o pensador francês libertou o pensamento do realismo dominante. A linguagem já podia linguajar por aí sem estar subordinada às condições do visível e do dizível. Foucault e Deleuze levaram o conceito adiante. À própria maneira, cada um nos diz de uma experiência do fora para pensar uma prática e uma ética de criação e resistência. Para que serve o Fora¹? Um pouco de ar livre, queda ou voo, questão de vida ou morte dirá Deleuze. A experiência do fora é imprescindível para viver neste mundo às lutas para se conseguir erigir acima das montanhas de lucro e de morte, e como Sísifo, ser agraciado por zéfiros dançantes que nos tocam anunciando: isto é vida! isto é vida! Isto, é vida!

À primeira vista o conceito pode nos estranhar, de Platão (Cristo) a Freud fomos interiorizados e acostumados a investigar as supostas profundezas do ser. Com os artifícios da razão, o homem lançou-se numa obsessiva busca interior com o intuito de encontrar respostas que justificassem sua breve existência. Escavou tão fundo que parece ter sido soterrado em si mesmo sob todos os pesos dos valores. Aprisionado dentro de si, querendo ser visto e escutado, o Eu grita como pode sob as ruínas de uma modernidade saturada de indiferença.

A interiorização atende por muitos nomes, Eu, Alma, Espírito, Ser, Sujeito, Essência, Ego… a semântica pode trair, daí que importa conhecer mais o que se passa nesse tipo de subjetivação dominante que é favorável aos interesses neoliberais e capaz de nos forçar o tempo inteiro ao esgotamento afetivo (intensivo). É algo muito simples que queremos dizer: todos precisamos de ternura e estamos todos de coração congelados. Interiorizados em um Eu-Sujeito, somos poucos permeáveis à experiência do fora – superfície onde borbulha matéria intensiva por excelência. Outras maneiras de dizer: sair das malhas do poder, resistir ao fascismo diário, reencontrar-se com a intensidade do desejo para ser capaz de criar modos de viver e pensar mais potentes.

Na superfície, estamos em meio ao coração da matéria infinita em estado puro, no regaço do deusnume – spinozano, estamos impossibilitados da segurança do nome. Fora da interioridade, forças nunca antes experimentadas parecem ser intensas demais, pode ser fatal, mas quem quer se arriscar por um pouco de ambrósia deve esforçar-se para sair do mais profundo de si. Nossa filosofia é uma prática na contramão, abdicamos da busca interior. Queremos sair das cavernas do Eu-Sujeito e respirar à superfície onde possibilidades de vida intensivas se constroem ao sabor dos encontros entre corpos que circulam afetos capazes de aumentar ou diminuir nossa potência de agir e pensar.

O mais profundo é a pele. – PAUL VALÉRY

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Menos um conceito que se permite a definições em um campo de conhecimento, em Foucault e Deleuze, a experiência do fora diz respeito a uma prática e uma ética de viver que nos ajuda a fundar um modo de vida próprio através da despersonalização de um sujeito que foi interiorizado na tradição do pensamento como um elo entre o homem e o mundo – um mundo ancorado nas alturas dos ideais.

A grande questão de Foucault em sua última fase – cultivar uma vida que não seja apaixonada pelo poder mas implicada com forças vitais expansivas e criadoras -, que ressoa também em Deleuze, passa necessariamente pelo Fora enquanto campo de imanência que nos coloca em relação direta com a criação de modos de viver e pensar mais singulares.

Enquanto realidade e solo próprio de criação, o Fora é constituído por virtualidades que são realidades não nas formas presentes do dizível e do visível que constituem o atual, mas enquanto abertura de modos de existir (real virtual) que ainda estão por vir. Daí que o Fora é campo de forças e devir que escapam às limitações de um Eu cujo interior, hoje todo decorado com o papel de parede neoliberal, se vê ameaçado diante dessa explosão de diferenças que o ameaçam. Violentados pelas forças em seus estados a-significantes, já não sou “Eu” que penso e falo, mas “algo” pensa e fala em mim, somos forçados a pensar e, consequentemente, criar modos de existir.

Se a experiência do fora nos pressupõe estar em meio a uma tempestade de forças e nossas relações se pautam por referenciais nas formas do dizível e do visível de uma época, como isso pode nos ser uma experiência vital? Deleuze nos diz que as linhas do fora podem ser fatais, então estamos diante de como tornar em vivível e pensável forças indiferenciadas que podem nos levar ao colapso.

O homem de paixão morre um pouco como o capitão Ahab (Moby Dick de Melville), ou antes como Perseu, na perseguição da baleia. Ele franqueia a linha. (…) Essa linha é mortal, demasiado violenta e demasiado rápida, arrastando-nos numa atmosfera irrespirável (…) Seria necessário, simultaneamente, atravessar a linha e torná-la vivível, praticável, pensável. E fazer disso, tanto quanto possível, uma arte de viver. DELEUZE, Conversações, 1990.

Chegamos então ao capitão Ahab, disposto a morrer, se necessário, porque intensamente vivo, é um personagem exemplar de uma vida entregue à experiência do fora. Arriscava tudo mas não abria mão de estar sempre em sintonia com o tempestuoso mar exterior (inconsciente selvagem). Ahab, um apaixonado, perseguidor das intensidades, fez da sua linha mortal um vivível enquanto pode, viveu e morreu com ela. Durante sua jornada ele não para de dizer que a vida não é possível sem o risco.

Se viver é arriscar-se frente aos perigos, parece que nós o sabemos só enquanto sentença poética. Dispostos a fazer da morte uma obsessão a ser evitada, na realidade vamos todos levando uma vida morna, fria, às vezes muito fria, tal como a morte. Nossos empregos não passam de asilos contra o desespero. Cada um no seu interior, protegido de constrangimentos diante do outro, fazemos de cada encontro um adiamento, isso quando não o evitamos. Deixemos o capitão Ahab de lado, mas não sem antes invocá-lo uma última vez do fundo do mar:

Todos os homens vivem rodeados de linhas baleeiras. Todos nascem com uma corda no pescoço: porém, somente quando se sentem presos pela súbita e vertiginosa roda da morte, os mortais compreendem os sutis e onipresentes perigos da vida. MELVILLE, H. Moby Dick

fita em forma de Möbius

fita em forma de Möbius

Quando Foucault se debruçava sobre os gregos para pensar os cuidados de si, estava interessado em uma ética e uma arte de viver que nos coloca diante da seguinte questão: existe vida possível além do poder? Existe, e ela passa necessariamente pela experiência do fora. Deleuze também lança mão do conceito de dobra que nos ajuda nessa empreitada. Realizar dobra é fazer desse fora um “dentro” habitável, contudo, esse dentro não se trata de uma interiorização descolada do próprio fora. Tal como uma fita de Möbius, apresenta-se como uma invaginação onde “interior” e “exterior” estão em um mesmo plano. De outro modo, o fora se apresenta como campo de forças intensivas das quais podemos não suportar, mas podemos realizar pregas (dobrar as linhas do fora), isto é, criar modos de subjetivação, fazer da matéria intensiva, caótica e indiferenciada, uma forma vivível fora do poder, pois erigida do próprio campo de imanência.

Vergar a linha para chegar a viver sobre ela, com ela; questão de vida ou de morte (…) – DELEUZE, G. Conversações, 1990

Ilustração de Igor Morski

Ilustração de Igor Morski

Fomos interiorizados em uma subjetividade cindida da nossa natureza, separada e descolada de um solo de criação imanente, pois quase sempre nas alturas, soldada em valores e significantes rígidos e prenhes de poder. Apesar de séculos de trabalho para esculpir esse ser interior que supostamente habita um corpo-gaiola, profundamente desprezado ao longo dos séculos, nenhum corpo é totalmente impermeável às forças do fora. Fazer da linha do fora uma arte de viver contém seus perigos. Recolher-se diante de um mundo transtornado pode nos colocar à mercê de uma solidão que também pode nos engolfar. Tornar-se indiferente e evitar os encontros com o outro e o mundo como maneira de não ser incomodado ou ameaçado pode igualmente nos preencher de tristeza.

Toda resistência pressupõe o perigo de uma vida que se recusa a uma subjetividade neoliberal que facilmente abre mão da potência em troca do poder e, impotente de gozar, embarca em modos de viver que necessitam do rebaixamento e do aviltamento de outras vidas. Mas acreditamos que sempre há brechas por onde um corpo pode novamente ser intensificado e colocado em movimento, em toda existência há possibilidades de resistência, existir, já dizia Deleuze, por si só, já é uma resistência.

É necessário um esforço diário para “acreditar nesta vida e neste mundo” (Deleuze) quando o nosso espaço-tempo está saturado de fascismo e calúnia contra tudo aquilo que é vital. Kafka diz que um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós. Instrumentos mais terríveis que paliativos são necessários para a difícil tarefa de promover rachaduras no corpo e no pensamento visando liberar a vida interiorizada (edipianizada) e reencontrar-se à superfície do Fora. Tais instrumentos podem ser gestados através de uma arte do viver: um beijo, um pensamento, versos cheios de horror e beleza, ventos de outono, os olhos da mulher desejada, a noite, as sensações raras…

O céu está vazio e na terra os homens se afogam em solidão enquanto perseguem fortunas… é preciso lembrar de Ahab com a corda no pescoço, porém, em perigosa harmonia com aquilo que lhe era mais próprio: a vida em seu estado puro.


1. Não confundir Fora com exterior. O Eu enquanto sujeito interior da modernidade chama de exterior uma forma avessa para contrapor ao psiquismo interiorizado. O Fora que aqui falamos nos remete a forças em sua mais alta potência.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.