Literatura

Nosso inferno perfeito

Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Amordaçamos Édipo. Nunca precisamos perguntar o que éramos um ao outro. Fomos chegando e acomodando nossas catástrofes. Muito à vontade em nossos maus jeitos, eu com a minha, e você com a sua escuridão descobrimos um punhado de estrelas derramando-se sobre nós quando juntamos nossas trevas e anoitecemos juntos. Era bom. Quando você se destruía, eu cuidava de você, quando eu me destruía, você cuidava de mim. Revezávamos, assim, na arte de diminuir o nosso potencial destrutivo. Você não queria um cara bem-humorado pra lhe fazer sorrir e ir ao cinema de mãos dadas dividir pipoca e roubar beijo no escuro, você tinha suas próprias pernas – brancas, quase sempre com hematomas, com veias translúcidas azuis-esverdeadas, e lindas. Era bom estar juntados, você do seu jeito e eu do meu, eu em casa, você no bar, eu nos livros, você nos cigarros, nós dois quebrados, nós dois juntos e inteiros. Era bom e só agora eu tenho pensado assim. Acho que vem de ontem, o crush era bem diferente da foto – Bom a gente se vê por aí – Tudo bem eu disse. Nos despedimos. E foi só.

Se não despertar o interesse no primeiro encontro não dá certo, escutei em um dia desses em que pessoas vão aos seus empregos carregando esperanças mutiladas no peito apertado. Acho que está equivocado como palestra de RH. É preciso tempo pra começar a ver coisa bonita um no outro, mas assim, separados uns dos outros e juntados com os nossos telefones de bolso não temos tido tempo de ver, escutar e sentir pra começar a gostar – e então vamos indo se afogando em solidão e com muita vontade de conhecer e conversar um com o outro e a gente vê nos restaurantes cada um ou dois ou três sentados em uma mesa e quando todas estão ocupadas a pessoa fica constrangida e vai até ao balcão pedir um lugar pra sentar mesmo com tantos lugares sobrando e postamos memes cultuando a nossa indiferença mas Está tudo bem a gente diz um pro outro enquanto sabe que não, não está tudo bem, tudo vai mal.

O que você pensa da vidao que faz você querer acordar todos os dias nesse mundo besta – o que é a beleza pra você – quais são os teus medos e as tuas coragens – você fica tentando chegar ao fim do universo usando a imaginação – que coisas tornaria você mais alegre eu queria ter perguntado mas não perguntei. Mas foi só… Bom a gente se vê por aí – Tudo bem eu disse e a gente sabe, sabe que não vai mais se ver.

A gente não queria ser casal, só parceiros. O que mais alguém pode precisar pra encher-se de coragem novamente? E lá estava o mundo, vivo e pulsante, com toda a sua tragédia e esplendor, sorrindo pra mim, atiçando-me os sentidos que inalavam o dia e então aconteceu de lampejos de alegria começarem a pinicar-me novamente. Sentia que viver era tão fácil, tão fácil que me ocorria de perguntar – O que foi? – e esperava você jorrar as palavras misturadas ao fôlego que faltava, até que você acendia outro cigarro e eu aproveita a pausa para dizer Vem cá, vai ficar tudo bem e claro que não ia ficar tudo bem mas tinha carinho e… – já reparamos que carinho é capaz de preencher a gente com uma coragem sobrenatural? A ciência e a filosofia… não, não falaram sobre isso. Freud, o homem que conhecia a alma – é o que dizem – não reparou ou tinha medo da ternura, ele não olhava o paciente, ficava afastado. Nem tocava, toque de gente que gosta de gente, toque que diz Não irei te julgar, não se preocupe em não poder ser o seu melhor, toque de amigo que diz Você não está sozinho neste mundo. Na verdade, o psicanalista também é neurótico como a gente, ele e quase todo mundo: temos medo da ternura.

Foi só muito tempo depois que me dei conta de que o seu olho parecia pintura egípcia, seu olho vívido de Cleópatra em traços firmes de quase losango que ganhava vida própria quando você aplicava rímel e sombra. Havia um universo inteiro contido ali e era isso que eu tanto ficava olhando – O que foi? – até você me interromper. Levou ainda mais tempo pra você deixar eu dar uma mordida na sua bunda branca e foi macio, como pudim. Também foi só depois de muitos dias de quando a gente não queria mais estar um com o outro que nosso estoicismo foi se rendendo. – Oi. Quer vir aqui? A gente fica quieto. Assiste e fuma. Pode dormir aqui se quiser. – Tá bom, eu vou. – Naquela noite eu falei Pega leve! e você não me escutou e foi ficando com a sonolência de anjos extenuados depois de terem vencido uma batalha com os demônios. Talvez você estivesse precisando de cuidado, onde eu estava esse tempo todo em que estive vagando entre os mortos, perdido e fora de mim? Foi tão bonito ver o seu rosto com a placidez beatífica de uma Santa Tereza em êxtase, ali, no tapete peludo, abandonado junto às suas mãos com os dedos quase dentro da boca. Você não sabe, mas aquela noite abandonei o Ingmar Bergman que você detestava – Não acontece nada, de tédio basta a vida! – você dizia e lá se ia mais um copo e fiquei assistindo você tal como uma Santa Tereza vestida com poucas roupas surradas e com botas de cano curto – isso é importante, as botas, de cano curto – sonhando, sobre o tapete, peludo, no chão. É preciso sentir o corpo escorrendo no tempo pra acontecer coisas na gente eu dizia mas não esperei e juntei-me ao seu sono ali mesmo e novamente minha escuridão virou noite estrelada – você tinha razão, que tédio o Bergman.

Mas já faz tanto tempo que as estrelas se apagaram… já nem sei por onde tu andas, sem telefone e sem perfil – tão bonito a pessoa não ter perfil, eu acho. Pergunto-me o que querem dizer essas lembranças que depois de tanto tempo retornam borboleteando em nós misturas confusas de alegria e tristeza? Essa madrugada acordei assustado e senti o vazio do quarto cheio da tua presença. E agora, na colheita do tempo, ainda continuo descobrindo coisas bonitas em você. Meu doce tormento, nosso inferno era perfeito.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.