Filosofia

Fazer muitas coisas para não ter que lidar com o que somos

Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Ocupar o nosso tempo a partir de uma agenda produtivista-utilitária é entrar no ritmo frenético e bruto da vida moderna que mais nos condena a uma morte em vida do que nos abre às experimentações de vida – as nossas experimentações, e não as oferecidas nas boutiques existenciais organizadas pelo capital. Restringimos a passagem das intensidades que dependem da afirmação de um tempo como duração, uma duração que nos é própria, que permite “cada um [saber] a dor e a delícia de ser o que é”. E se a gente não descobre a dor e a delícia de ser o que somos… nos tornamos, sobretudo, um tarefeiro organizado pela agenda burocrata do capital-estado.


 

[texto atualizado e revisado em outubro/2015]

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida é tão rara
[LENINE]

A gente tem se definido pelo fazer (produzir) há muito tempo – entendido aqui como um fazer produtivo dentro do contexto capitalista. “Sou um garçom”, quando fazer a atividade de garçom não define quem sou, e quanta naturalidade que nos definimos pelo que fazemos, a naturalidade própria de que a inversão se tornou a própria realidade.

Muitos experimentam um mal estar profundo quando não estão fazendo nada. Produzir é se sentir útil em uma sociedade onde o modo de produção é altamente valorizado. Mas ser e viver não se reduz à produção utilitária.

A experiência de viver tem se definido pela experiência de consumir. Viajar e conhecer lugares, ir a eventos e restaurantes, tomar um vinho ou uma cerveja… tornam-se muito mais narrativas do indivíduo em relação ao que ele possui (ter) do que experiências de vida.

Será que é tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara (Tão rara)

LENINE

Não quer dizer que não há sentimentos, sensações, vivências, enfim, experimentações do indivíduo com a criação da própria vida, quer dizer que as relações que o indivíduo faz com suas experiências são marcadas, profundamente, em nosso tempo, por uma necessidade de narrativas que o colocam enquanto uma pessoa interessante que faz muitas coisas, de materializar as experiências em objetos e colocá-las em álbuns e inúmeras e repetitivas fotos e selfies que possam ser postadas em redes sociais e mostradas aos familiares e amigos.

É muito mais interessante ir para Paris e fazer selfies em frente a torre Eiffel do que ir acampar junto à cachoeiras e árvores em uma cidadezinha do interior, ainda que o indivíduo se sinta mais confortável e satisfeito no segundo caso.

A maior parte desses processos é inconsciente, diz respeito a relações complexas que vão se formando entre sociedade-indivíduo-mundo.

Quanto mais ocupados ficamos com os fazeres tarefeiro menos abertos ficamos aos sentimentos e sensações. Quanto mais preocupados ficamos em se mostrar com aquilo que é mais valorado, menos satisfeitos e plenos conosco ficamos. Em outras palavras, mais limitados vamos ficando à criação da própria vida quanto mais nos ocupamos com as demandas produtivista da sociedade.

Ocupando-nos com o frenesi de uma vida produtivista ficamos presos a um espaço-tempo burocrático, somos organizados de fora e restringimos a passagem das intensidades que dependem da afirmação de um tempo como duração, um tempo que nos é próprio, singular e vivido concretamente. A duração, de alguma maneira, é o que permite “organizarmos” a nossa própria vida com o corpo e pensamento que somos, e não sermos organizados de fora pelos corpos e pensamentos estatais. A duração é o que permite “cada um [saber] a dor e a delícia de ser o que é”. E se a gente não descobre a dor e a delícia de ser o que é… nos tornamos, sobretudo, um tarefeiro organizado pela agenda burocrata do capital-estado.

Penso que o ritmo frenético e bruto da vida moderna mais nos condena a uma morte em vida do que nos abre às experimentações de vida – as nossas experimentações, e não as oferecidas nas boutiques existenciais organizadas pelo capital. A alegria de viver é indiferente ao progresso técnico-científico. A vida moderna, apesar de toda brilhantina produtivista de apelo às nossas sensações e sentimentos enquanto um dever ao gozo, paradoxalmente, também nos deixa nítido o quanto temos medo da vida, medo de ser, medo de sentir, medo da intensidade, medo de tudo aquilo que nos abre a uma verdadeira experimentação quem tem como plano o vazio criador, e para isso precisamos estar sempre ocupados, fazendo coisas, comprando coisas, negando o que somos… morrendo lentamente e sem perceber.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.