As escolas não ensinam a pensar, ensinam a representar a partir de um conhecimento dominante, enchem a cabeça das crianças de palha e dali costuma sair o cidadão obediente e normótico rumo aos troféus do mercado de trabalho sonhando em ser empreendedor. E quão desestimulante e entristecedor é conhecer algo que não se compõe com o nosso corpo, quando, por outro lado, aquilo que se compõe conosco nos impele ao conhecimento e as formas de conhecer vão nos modificando e vamos nos abrindo ao mundo e inventando modos de vida mais alegradores. Às vezes a nossa descoberta é um jeito de olhar ou de tocar, é conhecer um jeito de amar. Inventar maneiras de existir mais alegradoras está intimamente relacionado a um conhecimento que depende muito de saber rasgar o grande papel de parede representativo do mundo.
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A via representativa está ancorada em um conhecimento de mundo que herdamos, é tido como o mundo do verdadeiro, é prenhe de essência e natureza para cada coisa. Só que distante da vida vivida. Ser pensado a partir das representações é estar representado nas significações e nos sentidos usuais do mundo, é abdicar de criar nossos valores a partir da própria vida e passar a julgá-la a partir dos referenciais da moral.
Ter o domínio de um conhecimento representativo nos ajuda a circular pelo mundo com certa facilidade, em outro extremo, o louco é aquele que não tem quase nenhum domínio das representações de modo que sua circulação é mediada pelas escoltas de policiamento familiar, social e médico. Pode se passar uma vida inteira sem pensar, nunca faltarão pensamentos dominantes para seguir, o mercado do já pensado é extenso e agregador, é só abrir a boca, encadear algumas palavras e expressar mais do mesmo, e claro, tudo isso com a marca de um… eu penso!
Um pensamento dominantemente representativo tem implicações complexas nas maneiras de existir, pois diz respeito a um plano de onde o sujeito obtém seus principais conhecimentos e constitui suas concepções de mundo, valorando e significando a vida. E não é qualquer conhecimento, na cultura ocidental as referências para o conhecimento vêm de ideais tidos como verdadeiros e universais.
Mas a vida é singular, é processual, é múltipla, é devir, é fluxo. Foi necessário separar o corpo do pensamento para erigir um conhecimento representativo. E quantas costuras já não se tentaram para suturar os pedaços de uma vida dividida e separada de si e do mundo. Carne e espírito, sujeito e objeto (mundo), indivíduo e sociedade, sociedade e natureza, teoria e prática… e o pensamento vai de um lado e a vida quer seguir outros enquanto o tal “sujeito do conhecimento” se angustia. E não adianta costurar tudo e dar o nome de holístico que cairemos em outro modelo.
O conhecimento representativo é um grande mapa sobre o mundo do qual as coisas e os fenômenos estão organizados por significações, sentidos e valores já consagrados. É um mundo já avaliado, e se se sabe que os sentidos mudam às épocas e às culturas é um saber que costuma não ter força suficiente para levar a pensar que tudo tem uma genealogia, portanto, relações e disputas de forças, no limite, outras pessoas, outros corpos, outras vidas que não a nossa avaliaram e definiram o mundo do qual passamos representar a nossa vida… uma vida representada a partir da vida dos outros.
Um modelo de pensamento pressupõe um modo de funcionamento, certas orientações e coordenadas que orientam o pensar e a produção do conhecimento. A representação também funciona como conduítes de controle, pois marcam os corpos sob a supremacia da identidade, e todo poder caduca onde não há identidade, nos movimentos sociais nada parece incomodar tanto o poder, que se vê desesperado, como os corpos nus com os rostos cobertos. Representar é também encaixotar a vida e dispô-la no gregário. O quanto do nosso pensamento já não é a nossa própria dominação?
Saber que o pensamento já pressupõe certas orientações e que a nossa expressão já costuma vir carregada de um pré-concebido é abrir possibilidades para desamarrar a vida de um pensamento sem vitalidade porque preso em um plano abstrato, é dar maior passagem aos fluxos de desejo.
Deleuze diz que uma imagem moral do pensamento foi predominante na cultura ocidental, e essa imagem relaciona-se com um modelo representacional que pressupõe um pensamento contemplativo e um pensar a partir de faculdades mentais como se bastasse querer, essas problematizações permitem a Deleuze liberar o pensamento enquanto uma potência criadora (será abordado em outro momento).
Não significa que o sujeito é mero reflexo das representações, ele também é agente em um processo onde as forças do corpo e da cultura, por assim dizer, se chocam. Também não significa negar a representação, nós naturalmente observamos, registramos e reproduzimos, em suma, imitamos outros humanos e somos inscritos no humano. Nenhuma vida se faz plenamente enquanto criação. A questão é que não perceber o quanto estamos sob a influência de uma imagem moral do pensamento implica em uma vida fortemente sob as influências de todo tipo de dominação.