Filosofia Psicologia

Estar triste sob os holofotes da felicidade

Al Margen - usando mascaras
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Um campo social que pouco compreende das influências dos estados afetivos nos nossos modos de ser e agir e relaciona os afetos negativos com o fracasso de não conseguir estar em dia com uma agenda neoliberal que se modifica a cada instante, não considerará a tristeza como causa relevante da nossa potência de agir diminuída. Nesse sentido, escondemos boa parte da nossa tristeza de modo a evitar não cair na banalização dos queixumes que virou marca característica da nossa maneira de não nos escutar uns aos outros, e quando se tenta comunicá-la, procura-se por narrativas que a tornam mais ou menos aprovável. Essa dinâmica costuma ser muito bem captada pelos depressivos que não são os porta-vozes da lamúria como costumam ser “culpabilizados”, pelo contrário, costumam esconder o quanto conseguem seus estados despotencializados de viver e na maioria das vezes não é a fala que o denuncia, mas o rosto, o olhar, os hábitos, a voz, o movimento, enfim, o corpo que escapa e não pode ser absolutamente silenciado, sobretudo, através do nosso modo verborrágico de se comunicar. Dado o nosso vício de que tudo tem que ser comunicado, não é demais dizer que esconder não quer dizer que o oposto seria comunicá-la, mas negá-la e passar a acusar a vida entristecida em nós quando se cai na armadilha da culpa de uma sociedade que não nos deixará em paz para vivenciar a própria tristeza. Pior ainda é quando se passa ao ódio diante da necessidade de encontrar culpado(s).

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(…) procurei escrupulosamente não rir, não chorar, nem detestar as ações humanas, mas entendê-las. Assim, não encarei os afetos humanos, como são o amor, o ódio, a ira, a inveja, a glória, a misericórdia e as restantes comoções do ânimo, como vícios da natureza humana, mas como propriedades que lhe pertencem, tanto como o calor, o frio, a tempestade, o trovão e outros fenômenos do mesmo gênero pertencem à natureza do ar, os quais, embora sejam incômodos, são contudo necessários e têm causas certas, mediante as quais tentamos entender a sua natureza. SPINOZA, B. Tratado Político

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“Não odiar, não rir, não detestar, mas compreender” – não exatamente com essas palavras, Spinoza escreveu um dos mais belos pensamentos acerca do “seu método” para compreender as ações e os afetos humanos. Essa famosa passagem do seu Tratado Político, logo no parágrafo 4 do primeiro capítulo, marca um rompimento com a tradição moralista que ora concebe as paixões e os afetos como virtudes, ora como vícios. Sejam elas tristes ou alegres, nenhum de nós deveria sentir-nos ridículos por estar sob os efeitos de uma paixão, pois fazem parte da nossa natureza, no entanto, condenamos a tristeza como se ela fosse… uma imoralidade? um fracasso? uma doença? – a gramática neoliberal é vasta para acusar os aspectos negativos da existência. Em tempos de subjetivação neoliberal não temos o direito de estarmos tristes, justo a tristeza, o afeto mais abundante que circula entre nós, é amaldiçoada. Parte da obsessão de o indivíduo “consumir” felicidade para ilustrar seus avatares sociais vem do sentimento de vergonha e fracasso que os estados de tristeza costumam evocar.

A tristeza não decorre somente dos maus encontros e dos poderes que inoculam a impotência em nós, dada a infinita produção de corpos e as possibilidades dos encontros, inexoravelmente seremos afetados por corpos que não se combinam com o nosso – experimentaremos uma decomposição – e teremos nossa conatus (potência de agir) diminuída. No limite, os maus encontros vencerão reduzindo-nos ao grau zero de potência ou a morte, se preferir. É fácil acusar essa perspectiva de pessimista, no entanto, é justamente da imensa possibilidade que temos de nos entristecer que Spinoza faz da razão (uma razão capaz de compreender parte da ordem da Natureza) o seu mais potente dos afetos.

Diante de um convite para ir à sorveteira, Não dá, minha garganta está inflamada! e Não dá, estou triste são recusas radicalmente diferentes. Em gramática seria autoexplicativo, verbo de ligação não carece de complementos – só na gramática a felicidade de poder estar triste sem ser perturbado é concedida. Do contrário, evitamos dizer que não estamos afim porque estamos tristes, ainda que seja o caso – lembrando que a tristeza é um modo de estar, em linguagem spinozana, que torna nossa potência de agir diminuída, sendo a melancolia o grau máximo, por assim dizer, de um corpo extremamente despotencializado, o que corresponderia a certos graus depressivos em linguagem atual.

Justamente quando mais precisamos do outro, por que optamos em esconder ou disfarçar a tristeza como motivo, sobretudo, de fuga ou esquiva para os encontros? Não faltam motivos quando internalizamos o dever à felicidade do neoliberalismo como marca das nossas relações. A tristeza está ofuscada pela abundância de felicidade que ilumina não as nossas vidas, mas as imagens dos modos de existir que circulam entre nós. Tão ofuscada, que quase não a enxergamos como um dos afetos mais básicos que faz parte nossa natureza, sendo dela derivado a ampla gama dos demais afetos que nos diminuem.

Sendo experimentada como “vergonha” ou “fracasso”, uma espécie de quebra de contrato com a sociedade, para não ser excluído de uma certa atmosfera social, o indivíduo muitas vezes opta por escondê-la para preservar a fachada do ser tentando trilhar por outras justificativas. Paradoxalmente, apesar de escondermos a tristeza, comunicamo-la uns aos outros demasiadamente, só que de modo disfarçado. Se não se diz “estou sem ação/interesse porque estou triste” é porque não há escuta para a tristeza enquanto afeto que atinge toda a vitalidade do nosso corpo, tornando o nosso modo de existir rebaixado ou impotente. Demanda-se que esmiucemos nosso estado a partir das motivações e ações das quais nos servimos para ilustrar nossas vivências cotidianas, e é aí que nos perdemos comunicando nossas dores em profusão fazendo-nos de surdos e mudos uns aos outros, afinal, desde que o outro não diga algo como a descoberta de um câncer em estágio avançado a partir de exames de rotina – justificativa socialmente aceita -, tudo não deixará de ser escutado como queixumes dos quais nos acostumamos a “despejar” uns aos outros.

(De)morar no olhar um do outro sob um céu de silêncio continua sendo um dos melhores lugares para se recolher quando tudo no mundo parece desmoronar.

Diante da tristeza do outro, o nosso primeiro movimento quase sempre também é uma oportunidade para dizer a nossa tristeza, e daí caímos na trivialidade das reclamações sobre quase tudo e todos. Diante da indagação sobre o que está nos entristecendo podemos pensar: será que o outro quer realmente escutar porque quer ser generoso e nos dar um sopro de vida para quem sabe voltarmos a funcionar? Talvez! Quase sempre é uma cilada: não nos deixarão suficientemente em paz para estarmos tristes. E então passamos a uma espécie de comunicação sem escuta, quando as justificativas que damos as nossas dores  tendem a iniciar uma conferência sobre a tristeza: perdemos não só a escuta, como entristecemo-nos uns aos outros. Dizer que se está triste parece ser um convite para comunicarmos nossas tristezas uns aos outros como bons cristãos. Não se pode estar triste como um autêntico grego que luta sob um céu trágico?  Pior ainda é se a tristeza for derivada do campo social, diferente de uma perda ou mazela pessoal. – Estou triste pelo mundo, pela situação a que nos encontramos, a humilhação e o aviltamento diários contra a vida, tudo isso está me matando aos poucos! – “Justificar” a tristeza através dos fluxos de morte que o capitalismo global nos comunica diariamente e diminui nossa potência de agir nem no consultório do psicanalista é garantia de que encontraremos resguardo: quem é o sujeito ou o ego que sofre? A tristeza deve ser chancelada por um “Eu”, do contrário, pode ser conteúdo delirante.

Quantas maneiras poderíamos ajudar-nos uns aos outros a sair da tristeza ao invés de nos adentrarmos cada vez mais em diálogos entristecedores? Um ponto de partida seria jamais demandar que a tristeza se explique e com isso abriríamos outras vias de escuta. Compreendê-la como uma paixão ou um afeto da natureza humana – e não um negativo – abriria espaço para outros tipos de escuta. Um toque de mão e um aconchegante silêncio de acolhimento diante do outro que está triste poderia ter um efeito extraordinário. E tantas outras maneiras de fortalecermo-nos uns aos outros também não poderíamos inventar ao abandonar a posição narcísica do sofrimento? À tristeza responde-se com presença e contato e não com discursos, daí que a comunicação digital não permite uma escuta consistente dos afetos dada a sua forma linear, sem olhos, sem bocas, sem caras, sem clima afetivo… sem presença! – quase sempre. Esse tipo de acolhimento, com presença e contato, que não exclui de modo algum a comunicação, não é fácil, exige-se um tato e um cuidado apurados com o manuseio da fala. Por vezes, parece inexistir até mesmo em locais especializados, é quando, esgotados dos discursos, somos interpelados por aquele a quem buscamos ajuda a exigências narrativas… como se não existisse mais nenhum outro tipo de comunicação senão pela fala: do outro lado do divã, quase sempre, também há um neurótico como nós!

Cabe ainda dizer que esse nosso modo de não nos escutarmos uns aos outros que temos chamado de comunicação, sobretudo quando se trata dos nossos afetos e das questões que nos são mais íntimas, não pode ser tratada apenas como uma questão de caráter e insensibilidade das pessoas. Em que pese os fluxos do humano de nossa época, a maneira tão fácil com que comunicamos a tristeza deve-se também a maneira com que quase não falamos das nossas alegrias. Demanda-se também, justificativas para a alegria: a alegria do nascimento de um filho, da graduação acadêmica, de uma realização profissional… é fácil, no entanto, a vida é feita muito mais de pequenas alegrias das quais pouco comunicamos, mais do que isso, costumamos creditar às pequenas coisas os excessos de um romantismo fútil. Se contagiamo-nos com tristeza não é também por que pouco sabemos nos contagiar com alegria? Será que ainda não percebemos que alegria que se vive só tende a diminuir, ao contrário da tristeza que aumenta?

Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito. – CLARICE LISPECTOR, Água Viva.

Ao invés de maldizer os que estão tristes, os que estão melancolizados e os que estão deprimidos, ao invés de também odiar aqueles que estão tomados pelo ódio achando-se numa posição diferente odiando-os também – esse modo arrogante da nossa época de se considerar um esclarecido diante da obscuridade do outro -, não deveríamos lamentar por nós, todos nós, por não termos alegria o suficiente para nos contagiar? Não estar triste não significa que estamos alegres, quase sempre significa que estamos todos mais ou menos impotentes e pouco sabemos sobre um agir, pequenos gestos ou jeitos, que injetaria lufadas de alegria um no outro – a começar pelo consultório do analista.

Me disseram que a alegria é contagiante. Acredito, já estive alegre. Já estive diabolicamente alegre. Insuportavelmente alegre. O suficiente para incomodar todos ao meu redor, quase fizeram-me acreditar que eu estava louco, mas só estava sentindo que deus vivia em mim e em todas as coisas, e é verdade, vive mesmo, não só em mim, mas em você também, nas plantas, nos bichos, em tudo, até no cocô dos passarinhos. Então, penso em silêncio que se você fosse realmente alegre quando vem exigir que minha tristeza fale por narrativas você iria me contagiar com sua alegria, e eu, “e eu que já fui uma brasa” – como disse o poeta – “se assoprarem posso acender de novo”. Ia ser bom, com alegria a gente faz coisas, escreve, lê, é gentil, quer acordar e beijar. Mas não, você não tem alegria para dar porque também não está alegre, apenas não está triste, nem alegre nem triste, assim, pálida, besta, sonsa como um sapo de boca grande indeciso às seis da manhã na beira do lago que continua querendo saber por que estou triste, como se tristeza precisasse ser justificada. Sabia que às vezes a gente dorme alegre e acorda olhando para o teto com os olhos e corpo paralisados pensando como faremos para conseguir se levantar enquanto dissolvemos o gosto da derrota na boca? Tudo bem você não estar alegre, tudo bem não haver alegria o suficiente em você para me contagiar, eu sei que gente alegre, alegre mesmo, de corpo e alma, hoje em dia é difícil mesmo, mas você tem silêncio e companhia pra oferecer? Tudo bem, eu entendo, estamos todos sem tempo. Mas não, você tem tantas perguntas, e isso me aborrece tanto, esse exame e esse inquérito de psicanalista – o que foi? o que aconteceu? como começou? Se eu soubesse não estaria triste, se eu tivesse sequer palavras para poder responder eu não estaria triste, estaria escrevendo, gerando encontros, criando.


Ilustrações de Al Margen, artista argentino.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.