Sonho com um intelectual destruidor das evidências e universalidades, que localiza e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde está ou o que pensará amanhã, por estar muito atento ao presente. – FOUCAULT, M. Microfísica do poder
O grande inimigo, diz Foucault, é o fascismo. Aquele que gera ressentimento, que nos afasta daquilo que podemos, que gera servidão e exploração uns dos outros. Nós, que fomos ungidos com a pureza da verdade e dos ideais, costumamos nos colocar sempre na posição do bem e depositar o mal no outro. Não nos convém fazer uma história dos culpados e das falhas de um suposto sistema político, por isso queremos nos provocar não só com aquele fascismo que achamos fácil identificar externamente a nós, no outro e no sistema, mas, sobretudo aquele que está em cada um de nós, “que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora” (FOUCAULT, M. Prefácio in DELEUZE, G. & GUATTARI. O Anti-Édipo)
Liberar a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante: primeiro passo, por assim dizer, do “guia” de Foucault para uma vida contrária às formas do fascismo. Assim, desde já dizemos que do ponto de vista macropolítico até percebemos diferenças entre esquerda e direita, no entanto, do ponto de vista micropolítico, ambas são ditaduras que inibem a potência da vida. Portanto, não nos convêm debater entre posições políticas rasas, mas pensar em agenciamentos com aquilo que temos e podemos, com o nosso entorno, para fazer proliferar forças ativas que irão possibilitar re-organizações de novos lugares, afetivos e materiais.
As grandes máquinas paranoicas, criadas e sustentadas pela impotência e pelo medo, têm em comum a indignação com o mundo em vias de ser dilacerado pelo inimigo que pode assumir muitos rostos. É o medo da desagregação deste mundo – e de nós – que se consolidou e que aprendemos a chamar de nosso. Um mundo das cantilenas de força moral nacionalista que se alimentam de vidas entristecidas, promovendo subjetivações que ao invés de liberar as verdadeiras ações políticas acabam por interiorizar em nós mesmos o desejo pelo poder.
É necessário entender que corpos entristecidos vivendo separados daquilo que podem sempre produziram um tipo muito peculiar de desejo que permanece atravessando as rupturas históricas, o desejo pelo poder, o desejo de reunificação, desejo de que um grande líder apareça para nos salvar. As máquinas paranoicas totalitárias e unificantes esperam o retorno do messias como aquele capaz de livrar-nos de todo o mal.
O modo de vida fascista , mesmo passado os tempos de Hitler e Mussolini, continua bradando que é necessário tomar atitudes enérgicas contra o inimigo, mesmo que este seja imaginário. “Não iremos permitir que destruam nosso país, nossas famílias, nossos filhos, nossos valores, nossa riqueza“. Eis as preces diárias daqueles que acreditam que política é de responsabilidade de alguém capaz de gerenciar nossas vidas da melhor maneira possível. Quem é capaz disso? Dadas as crescentes segregações pelo mundo diante das diversidades acusadas de depositárias de todo mal, não nos é difícil perceber que os campos de concentrações foram se transformando e assumindo outras configurações muito mais sutis em vez de serem extintos.
As tecnologias e as possibilidades de controle hoje são tão mais abundantes e sofisticadas que as dos grandes líderes fascistas de outrora que, sutilmente, foram se interiorizando em nós, possibilitando “pequenos fascismos” que através das nossas subjetividades, nossas condutas, maneiras de se relacionar e se afetar que radicalizam contra outros modos de pensar, viver e sentir que escapam daquilo que é considerado natural.
Talvez nem percebamos que pouco a pouco fomos nos tornando o vigia e o carrasco de cada um de nós. Isolados em nossos minúsculos campos de concentração materiais e afetivos, desconfiados e com medo uns dos outros, disseminamos culpas e acusações, fazendo do social um emaranhado de forças paranoicas. Se tomamos aqui que liberar a ação política de toda forma de movimento totalizante é uma questão primeira por excelência, é talvez porque seja necessário destruir algo para construir.
É assustador como o julgamento nos é tão fácil, sempre achamos que temos a verdade em nossas mãos, em nossos livros. Ao menor fragmento de diferença tendemos a nos agarrar em nossos ideais unificadores como forma de se proteger do inimigo em potencial. É julgando, acusando e punindo a pluralidade da vida que disseminamos a paranoia no campo social. Queremos totalizar e unificar a vida nas abstrações das leis, na democracia, na economia, no poder de controlar o mal que o diferente representa.
Nossos modos de se relacionar uns com os outros, será que não são tão excludentes quanto os da política paranoica? Quem somos quando temos a possibilidade de fazer uso de um poder diante do outro? Somos tão diferentes assim daqueles que elegemos como políticos? Seríamos então unificadores enrustidos? Revolução? Ora, vale muito mais um devir-revolucionário! Comecemos por nós mesmos, toda vida já é uma resistência, diz Deleuze. Resistir, para nós, passa também pela maneira à qual nós nos constituímos como indivíduos.
Libertar-se da grande máquina paranoica em nós é sair dos campos de concentrações dos quais estamos confinados para liberar possibilidades de vida que possam se alinhar mais com aquilo que somos e não com aquilo que querem que sejamos. Poderíamos começar usando a metáfora platônica e dizer que é preciso sair da caverna que nos prenderam, mas dizer também que queremos construir nossas próprias cavernas! Não procuramos uma luz unificadora, muito pelo contrário, isso agora nos assusta. Queremos encontrar nossos próprios caminhos, mesmo que seja penetrando cada vez mais profundamente em nossos mundos.
Estes caminhos serão traçados para além do modo convencional de fazer política. Quanta pluralidade é esmagada nos modos falsamente polarizados de olhar a vida? Não acreditamos no bem nem no mal, nem no moralismo nem no imoralismo, não nos guiamos pela direita nem pela esquerda, não acreditamos em uma tabela com os valores necessários para salvar o mundo, aliás, também não acreditamos em uma salvação e nem estamos esperando por uma revolução.
Não nos importa defender o Estado ou o Capital, para nós isso é uma grande tolice pois ambos não são antagônicos, um depende do outro e um não existe sem o outro. O caminho que Foucault nos abre é por um jeito inventivo – e transgressivo – de estar no mundo, que passa por baixo de leis e segmentações. Procurar um modo de vida que resista! Uma criatividade imanente! A guerra contra o fascismo não se faz cara a cara, com ódio em nossas faces, mas muito mais por uma vontade enorme de viver na diferença, habitá-la, criá-la, como se ela fosse o cerne de tudo!
Foucault não era um sonhador e não estava esperando uma revolução, seu objetivo era criar o novo no presente, liberar os fluxos desejantes, inventar linhas de fuga em meio às linhas duras e polarizadas que nos levam a interpretações paranoicas da vida e das relações. Política diz respeito à criação de modos de vida, pois a própria vida é um lugar e objeto de constituição política. E como lugar político ela é visada a todo instante pelas máquinas de captura do Estado-Capital.
Ora, não sabemos o que pode a vida, mas sabemos que se continuarmos presos às cristalizações totalizantes de uma política paranoica, nos encerraremos na impotência e sequer vamos experimentar os pequenos sopros de alegria que nos convidam à criação.
Queremos quebrar com este fluxo unificantes afirmando as virtualidades e brechas inventivas do real. Nesse modo “político de ser” acreditamos que é possível novas significações e sentidos para polinizar modos de viver menos performáticos e servis às demandas do capital e mais alegres, pois a própria alegria aqui tende a se tornar revolucionária, por estar mais alinhadas com os nossos afetos, a nossa bússola existencial por excelência.
Libertar a ação política, enfim, é cuidar das alianças que nossa subjetividade realiza, e cada um de nós pode fazer isso através de inventividades micropolíticas que se dão através do modo como cuidamos do nosso pensamento, dos nossos afetos, das forças que circulam pelos nossos corpos, etc. É sempre através de combates na própria imanência que podemos selecionar e cultivar forças ativas que nos permitem agenciar e inventar dispositivos ou modos de viver capazes de enfrentar as forças reativas que tendem a nos cooptar em movimentos totalizantes cuja lógica paranoica inscreve-se no corpo. E se o corpo também é lugar de constituição política, nossas ações e pensamentos serão mais ou menos fascistas de acordo com os afetos que nos atravessam.
Cuidar dos agenciamento e alianças que estabelecemos com o nosso contexto, sempre plural e móvel, é fundamental para desenvolver essa capacidade de batalha micropolítica. Nesse sentido, o foco não está tanto em atacar as grandes máquinas fascistas, mas criar condições para circular forças ativas que possibilitem fazer frente às investidas das forças reativas.
Texto da série Para uma vida não-fascista
Escrito à quatro mãos com Rafael Trindade | Razão Inadequada