Filosofia Psicologia

Inteligência emocional: contra a indiferença dos desiludidos

Inteligência emocional: corpos são turbilhões de afetos
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Os gregos clássicos sabiam da potência das emoções e dos sentimentos (paixões) tanto para nos levar à ruína como para nos enlevar. Um helênico jamais iria optar pelo caminho da indiferença frente ao potencial destrutivo das paixões, pelo contrário, queria conhecer para poder lidar com essas forças. O controle sobre as paixões que poderiam escravizar era considerado uma virtude a ser desenvolvida, a sophrosýne¹. A partir do fortalecimento do Cristianismo e, nesse esteio, do racionalismo que separou mente (alma) e corpo (carne) de forma radical, os afetos passaram a ser desprezados. Se pudéssemos contabilizar uma história dos sentimentos e das emoções, descobrir-nos-íamos cada vez mais embotados e indiferentes, fechados e desconfiados acabamos por negar os encontros – Todos temos muito desejo, de se olhar, de se conhecer, de se dizer, mas cheios de receio. Queremos retornar à virtude daqueles gregos, puxar alguns pensamentos de Spinoza e Nietzsche, fazer algumas torções e falar, ao nosso modo, de inteligência emocional, um termo recorrido, tardiamente, na ciência.

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A inteligência emocional tem sido muito difundida na psicologia e em áreas de administração e autoajuda. O mercado fez do termo um desses tantos chavões que se coloca a serviço da produtividade e do pensamento positivo. Nós não somos afins desses modos de pensar. Inteligência emocional para nós não é nenhuma descoberta, antes de todas essas “novidades científicas” que, por sinal, costumam ser retardadas em relação à filosofia, Spinoza já no século XVII tratou na sua Ética de uma vida onde mente e corpo não são coisas separadas, mas modos (atributos) diferentes de uma mesma essência (substância).

Definição de inteligência emocional na psicologia
De modo geral, as definições de inteligência emocional a partir da psicologia vêm, sobretudo, das abordagens cognitivas e comportamentais, girando em torno de 1) conhecer as próprias emoções (autoconsciência); 2) lidar com as emoções bem como os sentimentos; 3) motivar-se, enquanto controle das emoções e sentimentos direcionados para atingir criatividade e metas; 4) reconhecer as emoções nos outros (empatia) e 5) lidar com relacionamentos, diz respeito à arte de lidar com as emoções dos outros. A partir daí os pensamentos a respeito podem ser direcionados com ênfases diversas, ora mais à cognição, ora mais aos comportamentos e suas modificações no ambiente.

Percebe-se um certo alinhamento com a subjetividade neoliberal?

São inúmeras as maneiras de desprezo dos sentimentos e das emoções, apesar de valorizados dentro de alguns modelos (falaremos disso posteriormente). Dizem para não nos deixar se afetar² por emoções e sentimentos quando se trata de pensar, elaborar ou projetar algo sobre nossa vida. Muitos dos que se sentem traídos, não amados o suficiente e sedentos por justiça (vingança?) costumam desprezar os sentimentos e as emoções e se fechar na indiferença. Há desiludidos de todo tipo, uma certa cantilena é recorrente – Amei quem não merecia, fui tolo(a), aprendi que as pessoas…  e então justificamos com o negativo sempre do outro, esse depositário de nossas feridas narcísicas. Urge o amanhã nos cobrando felicidade e gente bem-sucedida deve praticar a regra do desapego às pessoas, tendência neoliberal diante da cafonice do amor.

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Anatomical Shell X. D. PUGGIONI

O que tudo isso nos diz é que costumamos temer as intensidades, temos medo da vida e suas potências, daí corremos como coelhos assustados para dentro de nossas tocas e vamos paulatinamente nos fechando aos encontros com o mundo e toda sua diversidade ao primeiro que nos parte o coração e damos um passo muito grande à indiferença, alimentando uma vida cada vez mais impotente.

Quem nunca disse que não queria se apaixonar novamente depois de ver o mundo se quebrar diante de um não? A sociedade diz que é preciso ser amado, desejado e reconhecido, no entanto – é preciso dizer – na maioria das vezes não seremos amados, reconhecidos e desejados. Quando internalizamos esse mantra da felicidade como dever o ressentimento será inevitável, daí desenvolvemos um modo de ser reativo de viver. Dos encontros entre o dever à felicidade e o esforço para manter uma fachada de sucesso surge uma estranha necessidade de panfletar frases do modo de amar neoliberal como “solteiro sim, sozinho jamais!”

Não desenvolvemos inteligência emocional o suficiente para lidar com as frustrações. Somos doutrinados desde crianças a sufocar nossas paixões. Sentimento, essa coisa demasiadamente humana, não combina com gente bem-sucedida. Se o platonismo neoliberal chama nossos sentimentos e emoções de ilusões, por que recuamos? Ora, não queremos deixar de sonhar. Abracemos as desilusões como aquilo que, apesar das tristezas, nos modificou, de modo que já não somos mais os mesmos, e seguimos adiante não com as cantilenas dos desiludidos, mas com a alegria de quem sentiu intensidades e quer sentir novamente.

Não é porque sentimos e nos emocionamos por alguém que ficamos dependentes e sofremos quando o relacionamento termina, é porque não temos inteligência emocional o suficiente para lidar com as potências da vida, pois amar e se apaixonar, apesar da plurissignificação romântica e familiarista, são forças intensas e interessantíssimas para aumentar nossa potência de agir e resistir contra as formas de entristecimento da vida. Como algo que nos retira instantaneamente do cinza dos dias e faz das pequenas coisas do dia grandes acontecimentos? O amor é uma potência difícil demais à impotência das nossas subjetividades neoliberais, no amor já não temos mais nenhuma garantia de que permaneceremos os mesmos.

amor cresce a dois

Inteligência emocional é cultivar sentimentos e emoções que potencializam a vida, e lidar com aqueles que nos despotencializa.

As emoções e os sentimentos enriquecem o pensamento e dão força à vida, a indiferença devia ser a morte a ser combatida, e não atributo de personalidade a ser desejado. Nada mais rastejante e cansativo que uma vida na indiferença. Contrariando os que acusam os sentimentos porque se espetaram em algum romance, queremos dizer que bem antes dos nossos pensamentos e das nossas ações o corpo já é um mar de sentimentos e emoções. Inconscientemente os afetos circulam em nós, nesse mar de águas agitadas a lógica naufraga. O desprezo dos sentimentos e das emoções pelo racionalismo predominante no ocidente buscou fazer da razão uma fortaleza contra essas agitações (ver Pensamento representativo, corpo, forças…). Nesse turbilhão de afetos, o intelecto forjado pela razão pura e instrumental é um poser. Mais do que ter razão, QI e intelecto em suas formas geométricas, talvez seja mais interessante ter inteligência emocional.

A indiferença é o estado que mais se assemelha à morte, só que a morte em vida. Olhemos ao nosso redor para se dar conta da marcha fúnebre dos mortos-vivos. –  Amar, apaixonar-se, sentir? Não! não quero sofrer mais! – O coro das cantilenas edipianas aumenta a cada dia, na busca de uma vida sem sofrimento os desiludidos se fecham cada vez mais à gratuidade dos encontros e das relações, passam a olhar a vida com desconfiança e sem se darem conta vão congelando os sentimentos, as emoções, enfim, os afetos, os afetos, a matéria intensiva que nos move, os afetos, a bússola de nossas vidas.

Se os afetos são nossa bússola é porque nossos estados de espírito e humor são como “óculos” com que vemos o mundo, dando tempero e movimento às nossas ações e pensamentos. Quando estamos alegres ou tristes o mesmo mundo pode ser radicalmente diferente. Se não temos inteligência emocional, uma simples fechada no trânsito pode produzir raiva o suficiente para contaminar todas as nossas relações, amaldiçoamos as pessoas e as coisas ao nosso redor, chegamos ao final do dia prestes a explodir. Por outro lado, uma brisa de euforia ou o riso nos ajuda a escrever, pintar, expressar-se, aumenta nossa potência criativa. O que é uma ciência sem riso? Já falamos aqui até mesmo de uma ciência brincalhona a partir de alguns pensamentos nietzschianos.

O intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura e rangente, difícil de pôr em movimento; chamam de “levar a coisa a sério”, quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina – oh, como lhes deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica “séria”! E “onde há riso e alegria, o pensamento nada vale”: – assim diz o preconceito dessa besta séria contra toda “gaia ciência”. – Muito bem! Mostremos que é um preconceito! NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência – aforismo 327

Emoção significa, basicamente, movimentar-se. Sentimentos e emoções não se restringem aos estereótipos novelescos e familiares, ao carinho e seus derivados de sentimentalismo romântico. Sentir é o que nos faz vivos e sensíveis, com altos e baixos às vicissitudes da vida, só os mortos são uma constante. Temos alguns nomes para nomear emoções e sentimentos, mas nem sempre isso é possível, a diversidade de afetações é o próprio rio³ (devir) heraclitiano percorrendo em nós, mais importante que nomear é sentir os fluxos nos modificando e tomá-los como objetos do pensamento a fim de efetuar singularidades mais interessantes.

Estar vivo não nos distingue radicalmente dos mortos… Mas estar apaixonado, sim. – ROBERTO FREIRE

Spinoza falava em outros termos (afecções e afetos), mas aproximando-o para os nossos propósitos, podemos dizer que ele dava tamanha importância às emoções e aos sentimentos que uma emoção negativa só poderia ser neutralizada por outra, contrária e mais forte. Diante de sentimentos e emoções negativas a suposta ideia (platônica) por si só não tem força para provocar mudanças, para tanto, é fundamental fazer bom uso (inteligência emocional) dos sentimentos e das emoções para aumentar nossa potência de viver. Isso implica não cair no falso sentimentalismo que se comove diante de qualquer apelo (a publicidade adora esse tipo), bem como evitar o descontrole diante dos afetos que diminuem nossa potência de agir – não nos convém mais a birra diante das frustrações quando se sabe que elas serão inevitáveis.

Pensamos a inteligência emocional como a capacidade de reconhecer que a potência das intensidades pode levar tanto à criação quanto à destruição, cabendo a nós encontrar modos de lidar que nos sejam mais favoráveis à efetuação de singularidades mais… brincalhonas. Nesse sentido, o conhecimento enquanto capacidade de perceber a maneira como somos afetados pelas emoções e sentimentos junto aos encontros com o mundo, buscando pensar os efeitos dessas modificações em nós, é o mais potente dos afetos em Spinoza. Inteligência emocional, então, como seletividade de cultivar as emoções e os sentimentos que aumentam a nossa potência de agir.

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Trasl IX. D. PUGGIONI

Nossa sociedade valoriza (tolera?) a expressão de sentimentos e emoções até certo ponto, de preferência os que podem ser nomeados, os positivos e coletivos (sentimentos e emoções expressos a partir de um casamento, namoro, nascimento de um filho, etc.). Alguns vangloriam personagens que agem com uma suposta forma fria e calculista, o vilão de sucesso da dramaturgia dominante é o “coitadinho” que um dia fez o bem ou amou e depois foi traído, e então passou a elaborar planos de vingança, mas isso é imaginação da pior qualidade, na vida não há possibilidades de agir matematicamente, o indiferente, o frio e o calculista são imagens de alguém que está tomado pelo sentimento do ressentimento, um veneno que se bebe sozinho enquanto se imagina finais hollywoodiano. As novelas estão repletas desse ideário e deixam evidente a separação entre as emoções e sentimentos que devem ser expressos ou evitados. A tristeza só é aceita diante da morte de um ente querido… e não por muito tempo. Os regimes de sensibilidade singulares causam incômodos. Tudo isso, de certo modo, é produto de uma subjetividade neoliberal.

Os espaços acadêmicos ainda valorizam a figura do intelectual sério e o campo social consome notícias sobre superdotados e pequenos gênios de QI altíssimo. Mas o que é o QI, o que é a inteligência sem a capacidade de navegar em meio ao mar de emoções e sentimentos, enfim, às complexas e desconcertantes forças emotivas que fremem em nós – em grande parte inconscientemente -, impactando-nos profundamente na maneira como percebemos e reagimos? Temos motivos o suficiente para perceber que pessoas capazes de lidar com suas emoções e sentimentos, ainda que não tenham números altos de QI, conseguem cultivar uma boa vida, são menos dependentes, mais criativas, têm maior abertura e consequentemente maior capacidade de estabelecer relações variadas com o mundo e as pessoas, e, sobretudo, não se perdem travando batalhas contra si mesmas (autossabotagem).

Nietzsche esticou o intelecto moderno para mostrá-lo o quanto é frágil e não suporta a crueldade trágica da vida, para ele o conhecimento só pode ser validado pela vida, de modo que não mais nos perguntamos pelo verdadeiro ou pelo falso, mas pelo que aumenta ou diminui a vida. A verdade é aquilo que aumenta a nossa vida. Nesse sentido, para nós, um alto índice de QI tem aquele com maior capacidade de se colocar em variação e se compor com outros corpos no sentido de aumentar a potência de agir, em outras palavras, são as relações que estabelecemos com o mundo e os outros corpos, e não a inteligência pura e separada do corpo, que nos coloca na direção de uma vida mais alegre – mais alegre, e não mais lucrativa (vida produtiva).

Reich, um caro pensador da psicologia, não prometia que iria curar seus pacientes, mas que os capacitaria a sentir mais. Sentir mais! É com esse belo pensamento que queremos contrapor o enfadonho coro edipiano daqueles que desprezam os sentimentos e as emoções porque se sentem traídos, injustiçados, não amados e reconhecidos como desejariam e vão buscar refúgio nas desérticas planícies da indiferença, não queremos deixar de sentir para não sofrer mais, pelo contrário, queremos sentir para viver mais intensamente, muito mais, pois ainda não sentimos o suficiente, não nos colocamos em variação o suficiente, não experimentamos a vida o suficiente.


1. Nossos amigos inadequados têm um excelente texto sobre a sophrosýne.

2. Afetos, sentimentos e emoções têm especificidades que não iremos nos ater neste texto. De modo geral, queremos englobar sentimentos e emoções quando usarmos a palavra afetos. Emoções mereceria um estudo à parte, grosso modo o sentimento seria uma emoção com juízo de valor. Emoções e sentimentos interagem entre si.

3. Referência à famosa frase de Heráclito: Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras.

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Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.