Filosofia Sociopolíticos

O riso contra o fascismo

O Grande Ditador, Chaplin
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Fora o deboche,
o poder não pode rir.
O poder não suporta o riso.
O poder não suporta a alegria.
Riso e alegria desestabilizam.

O que nos faz rir no meio de todas
essas catástrofes? DELEUZE, G.*

Conseguir rir do fascismo não através da ira, da vingança e da morte, mas da vida, que arma poderosa é essa que tão poucos foram capazes de usá-la? Ninguém conseguiu rir tão bem não só do fascismo ideológico das guerras, mas também daquele que permeava através de processos que começavam apoderar-se da vida através de uma instrumentalização bestial do corpo tornado ferramenta de trabalho, como Charles Chaplin o fez através de vários longas e curtas criados ao longo do século XX. O Grande Ditador (1940) talvez seja a película que mais escancarou as faces ridículas do poder.

No meu entender o ser humano tem duas saídas para enfrentar o trágico da existência: o sonho e o riso. – SUASSUNA, A.
Talvez hoje esse riso que o gênio de Chaplin expressou seja uma das forças mais entorpecidas em nós. Queremos acreditar que conseguir rir neste mundo onde tudo ao nosso redor parece estar impregnado daquele fascismo denunciado por Foucault que vai se incrustando no nosso dia a dia com suas sutilezas cada vez mais sofisticadas seja uma questão de vida ou morte, de peso ou de leveza, de saúde ou de doença, de respirar ou de sufocar-se em meio a um cotidiano cuja vitalidade é insistentemente sequestrada pela seriedade do poder.

Não se trata de qualquer riso. De uma situação onde o riso irrompe pode se esperar vários efeitos e significados. O riso pode ter efeitos terapêuticos, desorganizar nossas armaduras internas – nos sentimos mais leves!, aliviar o sofrimento e a tragédia, pode ser desencadeado quando nos sentimos tocados pela beleza ou vir acompanhado de lágrimas ou choro, há ainda o riso que vem como deboche e depreciação que são formas de mascarar o ressentimento e a ignorância – tipo este que é tão presente no que se chama de “humor” atualmente. Não pretendemos esgotar todas as possibilidades. O riso, o silêncio, as lágrimas, os olhos, os cabelos da mulher amada lançados ao ar… quantos infinitos nos dizem?

(…) deixei de lado as afecções exteriores que se observam em afetos como o tremor, a palidez, o soluço, o riso, etc., porque se referem exclusivamente ao corpo, sem qualquer relação com a mente. (…)” SPINOZA, B. Ética, III.

Spinoza não nos deixa tão claro o que seria o riso, parece que para ele o riso se equivale a uma manifestação do corpo sem relação com a mente, assim como o soluço, o rubor, o susto, etc. Pode estar relacionado com a alegria quando não em excesso, no entanto, o que ele deixa claro é que existe um mau riso que depende do afeto do ódio, é o que ele chama de escárnio.

Faço, entre o escárnio e o riso, uma grande diferença. Com efeito, o riso, tal como a brincadeira, é pura alegria e, portanto, desde que não seja excessivo, é, por si, bom. SPINOZA, B. Ética, IV, prop. 45, escólio 2.

Sabemos então que o riso, em seus múltiplos sentidos, pode estar tanto relacionado aos afetos da alegria como da tristeza. Conhecemos bem o mau riso visto que o nosso pequeno fascismo do dia a dia é repleto desse tipo de riso. Escárnio ou deboche é o riso desencadeado pelo ódio dos que só conseguem rir das diferenças e do rebaixamento dos modos de vida do outro.

No entanto, conhecemos pouco daquilo que se poderia chamar de bom riso, ou de um riso cuja força extraordinária é capaz de dizer Sim! à vida até mesmo diante do trágico. Este riso é uma força tão extraordinária que é capaz de irromper em nós em meio às lágrimas, e ficamos com o efeito misterioso do intempestivo. Se a tristeza é o afeto mais abundante, por tabela, esse tipo de riso também é muito mais presente que aquele capaz de expandir a vida, aumentar o nosso tesão de viver e nos dar uma sustância vital para criar e se alegrar apesar de nós e das condições de nosso tempo.

Mas vale mais estar doido de alegria do que de tristeza; vale mais dançar pesadamente do que andar claudicando. Aprendei, pois, comigo a sabedoria: até a pior das coisas tem dois reversos, até a pior das coisas tem pernas para bailar; aprendei, pois, vós, homens superiores, a afirmar-vos sobre boas pernas. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.

É necessário ultrapassar o riso enquanto elemento de humor restrito aos aspectos do entretenimento, das ironias e dos preconceitos, por assim dizer, um humor dos homens tristes. E ninguém menos que Nietzsche falou tanto sobre o riso enquanto uma força da vida capaz de desestabilizar, destruir e criar. Toda sua obra de certo modo é um grande riso ao conhecimento sério que em outras palavras é o próprio homem e a própria vida tornados sérios e pesados. Assim, podemos pensar múltiplos aspectos do riso: o riso ético, o riso político, o riso de resistência, o riso, enfim, como uma máquina de guerra contra as forças entristecedoras que ameaçam engolfar cada espaço da nossa existência.

Rir alegremente é uma força disruptiva sob a atmosfera niilista e carregada de ódio da qual nos encontramos. O riso alegre expressa afirmativas de viver com suas nuances de expansividade da vida e do vivo, de si e dos outros visto que a potência de viver se dá por contágio. Não é fácil, não por acaso que o poder age entristecendo os corpos. Sabemos muito sobre escarnecer e debochar – tripudiar sobre o mau encontro do outro -, mas pouco sabemos contagiar através do riso. Se o poder só pode algo diante da impotência e o riso, como Chaplin já o demonstrou, é uma arma capaz de desnudar o ridículo do poder, diremos que um certo tipo de riso pode ser um dos mais potentes afetos, ético e político, para uma arte de viver contrária aos modos fascistas.

Tudo que fazemos com a força desse riso fortalece os nossos modos de viver e se relacionar. Contudo, somos demasiadamente sérios. Por que levamos nossas dores e nossas inadequações tão a sério? O que fizemos de nós para fazer da sexualidade algo tão pesado? Por que a educação e a pedagogia não riem? Precisamos de um palhaço de palco para ter motivos para rir? Rir diante das próprias absurdidades da existência, nossas fragilidades, nossas falhas e erros, nossos sofrimentos edipianos tornados causas das mais sérias… quem saberá viver e rir alegremente apesar de tudo?

O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes? DELEUZE, G.*

Somos estimulados demais à seriedade, passamos por uma pedagogia do sério desde os nossos primeiros passos. Aos primeiros toques capazes de nos provocar estados de graça vamos descobrindo também os primeiros temores, medos e receios. Os discursos se organizaram tanto contra o prazer que os padres fizeram da sexualidade um pecado, e até os mais cultos – Freud? – de certo modo reforçaram esse pensamento enquanto objeto a ser desvendado para nos revelar possíveis cura. A criança vai pouco a pouco perdendo o riso à medida que vai ganhando postura e assim, amarrando-nos uns sob os olhares dos outros, tudo em nós vai criando autocontrole para não perder as (com)posturas.

Quantos amores, danças, alegrias e pessoas poderíamos conhecer e nos conjugar se não nos levássemos tão a sério? Em tempos onde nosso Eu é condecorado por um narcisismo sem igual, tudo em nós é inflado de seriedade, perdemos o acontecimento com receio de nos desequilibrar das posturas de um Eu que se leva a sério demais e não suporta a inadequação. E quem define o adequado do inadequado? Se pudéssemos por instantes tirar o peso do nosso Euzinho e assistir as tramas de nossas errâncias, como a um filme, perceberíamos que, se não somos seres afeitos ao riso, certamente somos seres risíveis!

O riso enquanto força de vida e, portanto, resistente ao fascismo cotidiano, não se confunde com o riso fácil – e sem graça – dos rostos coagidos pelo dever à felicidade. Quanta tristeza é necessária para moldar um riso de plástico? Não que o riso entre familiares em um almoço de domingo não seja bom, mas do que ele é capaz? Não seria inofensivo demais? É preciso dizer: o riso mais potente talvez transborde em meios silenciosos. A gargalhada pode até ser interessante, mas nos momentos em que nos sentimos tomados por uma alegria plena conosco, com os outros e com as coisas, tudo em nós ri sem gargalhar. Não é a expressão comportamental que define o riso, mas determinadas forças conjugadas com afetos que produzem esse efeito vitalizante em nós.

Enquanto força que nos impulsiona e nos transborda, não há o que fazer quando somos tocados pelo riso, estamos na pista de dança e o olhar do outro já não nos incomoda. As cristalizações neurotizantes da vida se dissolvem. Queremos definir esse riso como a alegria acompanhada de uma ideia capaz de se conectar com outros corpos e produzir estados de dança e graça consigo mesmo, com os outros, com as flores, as nuvens, as coisas, o universo inteiro.

O pensamento é fundamental para produzir riso, sentimo-nos agraciados à medida que compreendemos a natureza das coisas e de nós mesmos. Inclusive, no terceiro gênero de conhecimento, da alegria que surge do que Spinoza chamou de beatitude, estamos inteiramente tomados por um estado de graça – e o que é a graça senão o transbordamento da alegria numa espécie de riso amoroso conosco e com os outros seres?

Lemos autores como Becket, Kafka, Nietzsche, Deleuze, Guattari, … também para rir, o academicismo não consegue ler tais autores porque é sério demais para enxergar que o pensamento se produz como uma dança. Depreende-se riso da própria vida, desde que ela não seja feita um caso sério a ser cuidado pelas instituições de sequestro da vida (Foucault). Se temos riso temos a força mais fundamental para produzir bons encontros. Capaz de desfazer toda neurose da vida, há risos tão potentes que encaram até mesmo o fascismo de frente sem responder na mesma medida de morte.

O intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura e rangente, difícil de pôr em movimento; chamam de “levar a coisa a sério”, quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina — oh, como lhes deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica “séria”! E “onde há riso e alegria, o pensamento nada vale”: — assim diz o preconceito dessa besta séria contra toda “gaia ciência.” — Muito bem! Mostremos que é um preconceito! NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Aforismo 327.

Que motivos precisamos para rir? Ora, não há motivo maior do que nós mesmos! Somos o que há de mais risível na vida, somos a criatura que persegue ideais como forma de encontrar a vida sem se dar conta de que na verdade está fugindo da própria vida. Zaratustra tem o riso como forma de desaprender, é uma maneira de destituir a gravidade da verdade que nos tira da leveza de viver.

Chegar ao ponto de conseguir rir de si mesmo, abraçando o ridículo, as dores e o sofrimento como aspectos da vida, não só é um sinal da mais grande saúde, como também uma força capaz de desnudar o poder e colocá-lo frente a frente com o seu próprio ridículo, tal como na parábola do Rei Nu.

Uma coisa eu sei, porém – aprendi-a, certa vez, de ti mesmo, ó Zaratustra: quem quer matar do modo mais cabal, esse ri. / ‘Não com a ira, se mata, mas com o riso’ – assim falaste tu um dia. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra, Parte IV.


*(…) Desconfio dos meus amigos. Mas é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer que façam, vou achar muita graça (…) Ser amigo é ver a pessoa e pensar: ‘O que vai nos fazer rir hoje? O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes?’ (…) DELEUZE, G. O Abecedário. F de Fidelidade (vídeo)

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.