Utilizamos o homem endividado como uma figura emergente de um capitalismo que se diz sempre em crise, mas nós não mordemos essa isca. Dizemos que o capitalismo não está em crise, pois a crise é a sua própria forma de governo baseada em argumentos sucessivos de déficits no sistema financeiro. Para nós a crise financeira é uma chantagem que atravessa todas as esferas da vida e produz um determinado tipo de vida. A crise é mais que material, é psíquica, é espiritual, é mental, é existencial, é, sobretudo, subjetiva.
Somos chantageados o tempo todo pelos discursos da crise. Desde os anos 70 a falência do estado é argumento central e banal, estamos no cerne do neoliberalismo que discursa crises à exaustão para que os grandes interesses do capital nunca fiquem desamparados. A dívida é a forma mais contundente do acúmulo de riquezas nas mãos de alguns.
Para nós o neoliberalismo é mais que uma teoria econômica, é uma forma de vida que soube muito bem extrair do corpo o seu máximo, e mais do que isso, e aí a grande diferença com os liberais clássicos, extrair mais-valia a partir do sofrimento. Para isso, além de transformar qualquer relação em mercado (a vida íntima e afetiva, por exemplo), conta com um indivíduo que fala a sua própria gramática, de modo que ele tanto almeja ser um empreendedor que quer acumular fortunas e poderes – pessoas apaixonadas pelo poder. Além disso, esse indivíduo se sente como o único responsável pelo seu próprio sucesso ou fracasso. Como o fracasso é inevitável, a culpa interiorizada por não acompanhar o mercado é vivida através de um sofrimento generalizado, e aí temos um sujeito que fica mais suscetível a reafirmar o neoliberalismo como um modo de vida que se dá através de um endividamento perpétuo.
Emerge aí o homem endividado cuja vida também é toda ela endividada, pois está a favor dos diversos meios de distração e captura, das mídias de massa às relações interpessoais fugazes e superficiais, toda sua energia é extraída pela economia da dívida e ele passa a trabalhar mais e em condições cada vez mais precárias achando inclusive natural porque certamente em sua história de vida houve alguma falha da qual ele é culpado, uma frustração amorosa, problemas com a bebida, um(a) amante, a impulsividade, a falta de fé, apoio familiar e de amigos, enfim, qualquer coisa poderá ser apontada pelo seu fracasso – único e exclusivo fracasso -, daí que dizemos que o neoliberalismo é extremamente astuto em explorar o sofrimento, pois ainda que a vida seja só cansaço e impotência, o homem endividado faz da produção sua batalha diária, e acredita, apesar de estar reduzido a trapo, que há uma oneração do sistema financeiro. Aponta-se alguns bodes expiatórios como causa e o sacrifício vem em nome do bem, como um mal necessário, para todos.
Na contramão da pobreza dos homens, as fábricas de automóveis, computadores, eletrônicos, bens e serviços materiais e espirituais de todos os tipos nunca produziram tanto, assim como os bancos, nunca deixaram, ano a ano, de faturar cada vez mais. Por outro lado, a vida é mantida através da redução e dos cortes, corte dos salários, dos serviços e do bem-estar social, cortes e privatizações que atravessam todas as esferas sociais. Mas por que uma vida tão deficitária se ela tem todo o seu tempo roubado e colocado a serviço da produção de cada vez mais riquezas? O capitalismo se enriquece através do gerenciamento do mínimo e da miséria. Nunca estivemos tão exaustos e cansados de tudo e de todos – o afeto é o primeiro que vai assumindo os tons de ódio.
Quem nunca fica exausto é o sistema financeiro que sempre acumula mais e mais. O nível da miséria e do rebaixamento da vida é o indicativo mais fidedigno da economia, quanto mais entristecida é a vida maior é a concentração de riqueza nas mãos de alguns. O estado é a máquina de assistencialismo por excelência do neoliberalismo, máquina de pagamento de juros e dividendos às custas da redução da vida ao mínimo por meio de uma expropriação ao máximo. Nada mais interessante para o capitalismo contemporâneo que uma incessante produção da dívida.
Para que essa grande máquina funcione é necessário produzir uma vida endividada, o lucro no capitalismo contemporâneo é essencialmente captura subjetiva. Para que isso funcione de forma natural e desejada, é fundamental a emergência de uma subjetividade contemporânea marcada pela dívida, a do homem endividado. Nas sociedades da informação o capitalismo penetra todos os poros, tudo é solúvel no desejo que já nasce endividado.
Se falamos em um homem endividado é porque para nós a dívida mais astuciosa do capitalismo é a dívida inoculada no desejo marcado pela culpa e pela falta. O homem endividado é a figura mais recente do homem culpado de séculos passados, podemos dizer que a culpa, agora enquanto dívida, é o motor do capitalismo contemporâneo, é por meio da culpa que é possível produzir uma vida na falta, produzindo subjetividades capazes de desejar a própria repressão (ver O ego é cúmplice).
Não estamos sendo enganados pelo estado, tudo é transparente. As formas crise e estado já estão mobilizadas na força desejante (ver Para além de uma política paranoica). A linguagem das forças contrárias, a da grande esquerda que se diz iluminada, ela própria se utiliza da linguagem neoliberal. Esse talvez seja o maior trunfo do neoliberalismo, fazer com que os seus supostos inimigos falem a sua mesma linguagem. É a partir daqui que a crise do sistema financeiro é transferida em forma de fracasso individual, é a partir daqui que se opera todo tipo de desmonte das forças políticas. Afinal, o que quer o homem endividado? Ele quer salvar a sua própria pele, a sua propriedade, aumentar os seus bens e também, ele mesmo utilizar-se do poder.
O déficit do homem endividado não é apenas financeiro, isso é contornado pela esperança de conquistar, individualmente, a própria riqueza. A sua queda é na impotência de uma vida sempre fraturada por meio de um parcelamento interminável de uma vida sempre por vir. O que está parcelado é uma suposta plenitude nunca alcançada porque o financiamento do sucesso é infinito. Ele precisa consumir os insumos e bens materiais, espirituais, cognitivos, afetivos, psíquicos, etc., para construir a imagem de uma vida a ser vivida.
Preciso de alguém que me ame, preciso de um carro, preciso de um studio, loft ou flat, preciso falar inglês, preciso ir à Miami, preciso fazer dieta, preciso ir à balada e tirar selfie com os amigos, preciso ser interessante, preciso pensar positivamente, preciso fazer ioga, preciso ser feliz, preciso… a dívida é mensurada pelas expectativas interiorizadas das imagens de sucesso em contraposição à queda no fracasso.
Eis aí a produção do homem endividado, o homem culpado porque obviamente não dá conta de satisfazer as exigências das experiências subjetivas que os impele incansavelmente. Vida que precisa ser paga para poder ser vivida é vida endividada, portanto, culpada. Vida culpada é vida fracassada que almeja poder e consumo como forma de se produzir a si mesma e sanar aquilo que ela não é, resta o homem submisso e despotencializado, porque a vida que ele quer nunca tem. Essa culpa interiorizada do homem endividado é a maneira mais eficaz de controle já produzida.
A culpabilização é uma função da subjetividade capitalística. A raiz das tecnologias capitalísticas de culpabilização consiste em propor sempre uma imagem de referência a partir da qual colocam-se questões tais como: “Quem é você?”, “você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de quê?”, “o que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais na sociedade?”, “a que corresponde sua fala?”, “que etiqueta poderia classificar você? E somos obrigados a assumir uma singularidade de nossa própria posição com o máximo de consistência. Só que isso é frequentemente impossível de fazermos sozinhos. No entanto, à menor vacilação diante dessa exigência de referência, acaba-se caindo, automaticamente, numa espécie de buraco, que faz com a gente comece a se indagar: “afinal das contas quem sou eu? Será que sou um merda?” É como se nosso próprio direito de existência desabasse. E aí se pensa que a melhor coisa que se tem a fazer é calar e interiorizar esses valores. Mas quem é que diz isso? Talvez não seja necessariamente o professor, ou o mestre explícito exterior, mas sim algo de nós mesmos, em nós mesmos e que nós mesmos reproduzimos. GUATTARI, F. & ROLNIK, S. Micropolítica – Cartografias do Desejo.
A vida já é potência plena e nada nos falta. Como compreender algo tão simples e que ao mesmo tempo nos parece tão distante? É distante porque desde criança somos impelidos a financiar uma vida que não temos e com isso nos endividamos (culpamos) cada vez mais. Achamos isso tão natural que perdemos de vista que viver é uma estilização daquilo que somos a partir de uma potência que nos é intrínseca. Estilizar é criar uma vida por meio de experimentação própria a partir dos encontros e dos agenciamentos que estabelecemos com o mundo. Agir, pensar e falar em nome próprio, e não através da gramática neoliberal, no mínimo nos abre para outras micropolíticas.
É claro que toda produção material do capitalismo faz parte do mundo, mas há uma grande diferença da vida que se utiliza da produção enquanto meios que podem fazer parte de uma estilização mais potente daquela que abdica da própria criação para buscar por uma das muitas imagens de vida produzidas pelo capitalismo.
Endividado e culpado, responsável pelo seu próprio fracasso perante a lógica neoliberal, o homem acaba aceitando a expropriação de si como pagamento da crise e expiação da culpa. Sua miséria é produto de uma vida expropriada para pagar os juros de uma dívida que ele interioriza como sendo sua. Constrangido pelo capital por um fracasso que não é seu, acaba achando natural ir sobrevivendo para pagar pequenas parcelas de uma vida que lhe é roubada diariamente por um estado que é mero instrumento-credor de juros cada vez mais altos para bancos e grandes corporações concentradores de capital.
E não é esse homem endividado que a esquerda tradicional insiste em não enxergar? Quando a esquerda não compreende a mobilização desejante que se dá a partir de uma vida culpada diante das imagens do sucesso ela não compreende que não basta apenas dizer às classes mais baixas que o estado irá acolhê-las. Não basta apenas aumentar a renda sem estancar o endividamento do desejo, não há renda suficiente na economia da dívida. É preciso compreender a vida na falta, é preciso compreender o homem endividado que é expropriado, antes de tudo, de sua potência. A expropriação não é só monetária, é do tempo, do afeto, do pensamento, do corpo, enfim, do desejo. Desejo expropriado é desejo que deseja a própria repressão.
Os discursos de crise encontram suporte na produção de uma dada subjetividade, vemos emergir a figura do homem endividado. Como interminável, a crise é a própria forma e doutrina do capitalismo contemporâneo, uma terapia de choque¹ age capilarmente para produzir um homem que faz da dívida, também, a sua própria forma de vida. Se o sistema financeiro diz que está em déficit ele sente os tremores, sente-se culpado e passa a repetir o mesmo coro neoliberal. Para que possamos encontrar outras maneiras de lutar é necessário compreender esse tipo de economia que produz vidas endividadas e culpadas, portanto, suscetíveis ao medo e ao ódio. Toda esquerda que se crê “iluminada” para conduzir uma suposta marcha à revolução será facilmente vencida pelas forças neoliberais que irão expropriar a vida ao máximo para acumular e concentrar cada vez mais o capital nas mãos de alguns.
(…) Trata-se de uma crise dos modos de subjetivação, dos modos de organização e de sociabilidade, das formas de investimento coletivo de formações do inconsciente, que escapam radicalmente às explicações universitárias tradicionais – sociológicas, marxistas ou outras. Essa crise é mundial, mas ela é apreendida, semiotizada e cartografada de diferentes maneiras, de acordo com o meio. GUATTARI, F. & ROLNIK, S. Micropolítica – Cartografias do Desejo.
1. Documentário “A doutrina do choque” baseado no pensamento de Naomi Klein.