A razão que nos iluminaria, prometera o “século das luzes”, descobrimos séculos mais tardes, que não passa de uma luz de vela sob um céu vazio e um fundo sem-fundo. Não foram os loucos ou os insanos que produziram Auschwitz. Assim como as guerras atuais também nos mostram que são praticadas por paladinos da razão.
Desconfiamos que o viver, quando deficitário de um grau de loucura, parece ser uma operação burocrática. Se Freud deu voz, na ciência, a um inconsciente, não foi para nos retirar dos hospícios do saber erigidos ao longo da história do pensamento. O inconsciente está para a psicanálise como as trevas estão para o Cristianismo, nesse sentido, o que pode a psicanálise, que fez da própria neurose o caminho da “cura”, em nos ajudar a conquistar um pouco de insanidade? Loucura e insanidade carregam demasiados significados, coloquemo-los entre parênteses para pensar sobre a intensidade que nos falta.
À medida que ficamos adultos a vida parece ir ficando cada vez mais morna e pouquíssima intensiva. Winnicott, estudando o desenvolvimento da sanidade percebeu que o ingresso na vida adulta deixa de lado a nossa melhor parte – a parte intensiva. Deleuze, em um tom ainda mais pungente, em seu Abecedário, dirá coisas como “O verdadeiro charme das pessoas é quando elas perdem as estribeiras, quando elas não sabem muito bem em que ponto estão”. Loucura e razão, sanidade e insanidade são muito mais que uma questão de saúde ou doença. São categorias políticas. Interessa a quem amaldiçoar nossos apetites e nossas intensidades? Quanta obsessão por nomear e catalogar os nossos estados mais terríveis e intensos. Lá onde não resta palavras não encontramos, por assim dizer, um deus-spinozano? Falar em intensidade é tomar o desejo enquanto excesso e transbordamento, diferente do desejo marcado pela falta.
Crescemos e vamos aprendendo a nos proteger dos excessos. E chamamos isso de sanidade, de maturidade, de crescimento, de vida adulta… a arte de empalhar a vida. Não é por acaso que somos incitados a viver o instante, a esbanjar dos prazeres que a modernidade pode nos oferecer sem se preocupar com o amanhã e a consumir bens e produtos que nos prometem dar “performance” às nossas vidas, pois é de notório conhecimento publicitário que pairamos entristecidos e impotentes, ávidos por novidades e palhaços de auditório em tardes de domingo.
Se nossas intensidades são capturadas como vamos gerir modos de viver mais alegradores? Não é pela falta disso ou daquilo que tudo parece ir mal, estamos esgotados porque vampirizados diariamente pelas máquinas de captura do desejo. Nunca se produziu tantas riquezas e, no entanto, a insatisfação parece não ter fim e, politicamente, respiramos, talvez, a mais densa das atmosferas niilistas. Queremos dizer algo muito simples: enquanto não percebermos que há uma captura da potência intensiva da vida pelas grandes máquinas castradoras, o estado, o capital, a família,… não iremos conseguir criar linhas de fuga para se banhar no caos.
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O título desse texto parte de algumas palavras de Winnicott. Em uma resenha sobre a obra “Memórias, Sonhos e Reflexões” de Jung, ele assim se expressou sobre si: “Eu era são, e através de análise e auto-análise conquistei certo grau de insanidade.”
O psicanalista inglês desconfiava que a sanidade poderia ser um paradoxo, pois quanto mais uma sociedade aspira à mestria e à realização de seus ideais e valores, tanto mais fica empobrecida do ponto de vista afetivo e criativo. Podemos dizer também, através de Spinoza, que tanto mais um corpo é separado daquilo que pode (negatividade dos apetites), tanto mais ele é tomado por afetos entristecedores. Ao contrário do que costumam dizer, nosso tempo não libertou o corpo, dotou-nos de mais liberdade para buscar um ideal de corpo. Preocupados com a nossa performance comportamental, estamos retardatários e descompassados com as velocidades afetivas, de modo que ainda somos pouco efetivos em estabelecer relações íntimas alegradoras uns com os outros.
Desde os primórdios os detentores da razão, os “normais”, nutrem uma relação paradoxal e ambígua com a loucura, os “loucos” ou “insanos”. Ora mais pendente para o negativo, ora para o positivo. Se na categoria da consciência colocamos a razão e a sanidade, no inconsciente colocamos a loucura e a insanidade. Se a loucura em nossa época faz barulho em seus aspectos romanescos, como as várias narrativas que associam a loucura com o artista ou a modos de viver mais libertários, não é tanto porque a loucura faz o artista ou o libertário como, talvez, porque desconfiamos que sejam justamente a razão e a sanidade que nos tornam inibidos para viver.
Apesar desses aspectos ruidosos, a loucura nunca deixou de ser uma força gravitacional que paira em nossas cabeças. A maneira como concebemos os aspectos da sanidade está associada a uma radical condenação do corpo enquanto atravessado por forças desejantes. Por outro lado, o inconsciente, como representante do desconhecido e do intensivo (forças insanas?), foi associado aos aspectos negativos. Freud, por exemplo, pensou o inconsciente enquanto um repositório de forças agressivas e incestuosas que deveriam ser castradas. (ver Quem tem medo do inconsciente?)
Se a criança é aquela que pelos adultos é tomada como a parte ainda não capaz de controlar os apetites do corpo e, por assim dizer, são consideradas com graus de “loucura” e “insanidade”, visto que a razão sempre esteve associada ao controle dos apetites do corpo, não é por menos que também nutrimos aspectos ambíguos com a infância que ora é remetida no saudosismo diante daquilo que foi perdido, ora é lembrada enquanto uma época onde a nossa ingenuidade nos tornava menos interessantes. Quando crianças queremos logo nos tornar adultos, não é por menos, visto que os adultos se vangloriam por ocupar um lugar de suposto saber do qual as crianças não podem ocupar só porque… são crianças.
Contudo, quando nos tornamos adultos sentimos na própria pele que algo que não sabemos muito bem como dizer se perdeu na infância. Perdemos, no limite, nossas energias intensivas, mais próximas da loucura que da razão burocrática. Não se trata de um saudosismo da infância. Trata-se de perceber que fomos perdendo o que chamaremos de intensidade ou da produção intensiva do desejo que àqueles tempos ainda não fora totalmente capturada e sufocada pelas grandes máquinas castradoras do desejo, o estado, a família, a religião, a cultura, etc.
Em criança, eu era cheios de impulsos loucos, desejos que ultrapassam o homem, e o mundo não podia me conter. Pouco a pouco, com o tempo, tornei-me mais ajuizado. Estabelecia limites, separava o possível do impossível, o humano do divino, segurava firme a minha pipa para que não fugisse. KAZANTZÁKIS, N. Zorba, o grego.
Não é curioso o quanto os adultos costumam referir-se a seus tempos de crianças como tempos onde a vida ainda era boa e pura ao contrário da perdição que é hoje? Ora, não só tornaram-se adultos como ficaram deslocados do tempo porque separados da produção intensiva. Assim, separados da capacidade de produzir afetos intensivos, o mundo atual é vivido como uma lástima. Acreditar nesta vida e neste mundo, disse Deleuze, é a tarefa que nos parece mais difícil, e não sem razão, afinal, o que podemos quando enlameados de impotência e cansaço existencial, afundados em vidas cada vez mais endividadas (ver O homem endividado) e sem intensidade? Paulatinamente, com o ingresso na vida adulta, vamos perdendo nosso tesão ou potência de viver.
Curioso que foi em uma nota de rodapé de um texto intitulado “Desenvolvimento Emocional Primitivo”, de 1945, que Winnicott percebeu aquilo que Freud, tão preocupado em domesticar os “demônios” do inconsciente, não percebeu:
Através da expressão artística, podemos esperar nos manter em contato com nossos selfs primitivos, de onde derivam os sentimentos mais intensos e até sensações terrivelmente agudas, e somos realmente pobres se formos apenas sãos. WINNICOTT, D. (grifos meus)
Sentimentos intensos e sensações terrivelmente agudas, podemos chamar, neste texto, como intensidades, e assim como Deleuze & Guattarri, Nietzsche, Spinoza, Bataille e tantos outros, Winnicott, e cada um a sua maneira, estão nos dizendo que separados da matéria intensiva da vida, aquilo que em nós é excesso e transbordamento – e não falta -, nós estaremos separados da potência criadora da vida e, portanto, empobrecidos, entristecidos e impotentes. É esse aspecto que a sanidade ou a razão, à maneira como foi concebida na história do pensamento, desprezou. Indo mais longe, desprezou justamente aquilo que nos é mais fundamental, afinal, o que podemos quando nosso desejo é desvitalizado pelas forças vampíricas do capital e suas máquinas castradoras? Desacreditamos da vida e nada nos resta senão lamúria, tédio e mal-estar, impotência generalizada que, mesclada com ofertas contemporâneas de redes sociais e consumo, coloca-nos facilmente na posição de viciados, viciados em pequenas doses de prazer como alívio diante de uma vida que não aguenta mais. E, como viciados, aliviamos, mas não conseguimos romper o círculo vicioso para retomar a intensidade e nossa potência criadora.
Winnicott, via nos bebês e nas crianças, a loucura no melhor sentido da palavra, pois capazes de experienciar sentimentos e sensações intensas. É verdade que a intensidade pode ser terrível e levar à loucura, mas também pode nos levar a experimentar afetos extremamente potencializadores. É necessário pensar os aspectos mais intensivos que ameaçam romper os diques da sanidade, e não negá-los. A despersonalização em Winnicott encontra suas potencialidades, pois diferentemente da personalidade que nos mantém nas malhas identitárias – o nosso “cercadinho” diante de tudo aquilo que desconhecemos e tememos -, possibilita acessos mais frequentes às forças intensivas e inconscientes em nós.
Winnicott, também vivendo em um mundo transtornado como nós, desconfiava que o ingresso na civilização através de uma maturidade desmesurada pela razão e pela sanidade implicava na perda da nossa melhor parte. “Que pobres seremos se formos apena sãos!” dirá o psicanalista inglês, e Deleuze, em um tom ainda mais pungente, em seu “Abecedário”, dirá coisas como “O verdadeiro charme das pessoas é quando elas perdem as estribeiras, quando elas não sabem muito bem em que ponto estão”, esse ponto de loucura que se confunde com o verdadeiro charme de alguém é aquele que quando captado leva-nos a se apaixonar. O que vemos em alguém quando nos apaixonamos, e que só nós vemos, é esse ponto, o ponto que nos faz perder as estribeiras e não sabemos bem por quê, no entanto, sentimos de imediato que somos atravessados por uma potência de vida extraordinária.
(…) O homem deve envolver-se em uma visão e construir uma casa que tenha uma forma evidente e que seja estável e fixa. No pavor que tem do caos, começa por levantar um guarda-chuva entre ele e o permanente redemoinho. Então, pinta o interior do guarda-chuva como um firmamento. Depois, anda à volta, vive, e morre sob seu guarda-chuva. Deixado em herança a seus descendentes, o guarda-chuva transforma-se em uma cúpula, uma abóbada, e os homens começam a sentir que algo está errado. O homem ergue, entre ele e o selvagem caos, algum maravilhoso edifício de sua própria criação, e gradualmente torna-se pálido e rígido embaixo de seu pára-sol.(…) LAWRENCE, D.H.
Se o controle e a sanidade estão ligados aos aspectos positivos da vida e o contrário nas categorias do negativo, o que está operando desde o berço não é simplesmente a nossa saúde, mas a conservação de modos de viver cada vez mais impotentes e docilizados. Tidas como “normais”, essas maneiras de viver são desalinhadas com aquilo que somos e podemos. É como se fôssemos “forçados” a viver uma vida inautêntica ou em desacordo com a nossa natureza, e não é por menos, pois se o nosso corpo e os nossos apetites são amaldiçoados, somos potencializados a deixar a cargo da consciência e dos aspectos “sãos” da mente o controle das nossas vidas, estamos desconectados da nossa melhor parte, dirá Winnicott. Aquilo que Foucault identificou como “técnicas de si” entre os gregos, voltadas para desenvolver uma “vida boa”, em nós funcionam como técnicas, no limite, voltadas para o aumento do capital – e não da vida.
O capital captura nossos fluxos desejantes através de processos de subjetivação que inoculam a falta, a culpa e o ressentimento no desejo. Desse modo, tornando-nos endividados, fica fácil direcionar a potência produtiva do desejo para a economia e não para a vida. Não nos desconfiamos ainda que tanto mais realizados e bem-sucedidos nos tornamos, que tanto mais conquistamos títulos e troféus reconhecidos socialmente, tanto mais nos sentimos distantes da alegria, ainda que às vezes estejamos envoltos por uma tênue névoa de felicidade? Não nos desconfiamos ainda que, por vezes, um bom encontro qualquer, sem o alarido das grandes realizações, faz-nos experimentar um instante de vida do qual gostaríamos que nunca se acabasse?
Diante dos modos de vida ditados como interessantes, veiculados em velocidades hipermodernas, já somos sempre velhos demais. Vejamos que as nossas exigências diante de relacionamentos íntimos, cada vez mais geridos como mercadorias, é sempre por alguém muito interessante, que faça a nossa vida cinzenta se tornar colorida. Ora, será que nós que exigimos tanto, somos tão interessantes assim? Esperando que o outro nos preencha evitamos inúmeros encontros que não saberíamos no que poderiam dar, vamos nos profissionalizando na arte de negar e evitar o encontro antes mesmo de experimentar.
Queremos estar visceralmente apaixonados, queremos ser surpreendidos por declarações e presentes inesperados, queremos jantar à luz de velas de segunda a domingo, queremos sexo selvagem e diário, queremos ser felizes assim e não de outro jeito. É o que dá ver tanta televisão. – MÁRIO QUINTANA
Não se trata de dizer que a loucura é uma espécie de salvação, não queremos enlouquecer e ficar à mercê dos burocratas do psiquismo, trata-se de conseguir perceber que as categorias da razão são, antes de tudo, categorias políticas e não meramente uma questão de saúde ou doença, assim como devolver ao caos, ao fora, ao inconsciente enquanto um mar de forças intensivas a condição de um líquido cósmico capaz de fornecer a matéria que precisamos para criar vidas mais próximas de obras de arte.
Aquilo que tomamos como sanidade está imerso na moralidade judaico-cristã e significa também um modo de dizer o que é da ordem do bem ou do mal. Em outras palavras, é dizer que certos modos de viver, falar, sentir, comportar-se… devem ser recompensados enquanto outros devem ser excluídos. Em uma comparação, sob os auspícios da razão instrumental o mundo não passa de objetos, funcionalidades e compromissos, enquanto um pouco de intensidade poderia nos levar a ver algo como pessoas, pássaros, flores, terra, céu, mar e abelhas e… enquanto vidas interconectadas dançando na musicalidade de uma matéria cuja carne também somos carne e daí é um passo para sentir sensações e sentimentos sem vocabulário percorrerem nossos corpos levando-nos a querer expressar algo ao mundo.
Convém pensar a quem interessa uma sociedade cuja pedagógica, obsessivamente, desde que nascemos, é pautada no controle dos excessos. Será mesmo que o excessivo é sempre destrutivo ou não estamos nos aperfeiçoando a ter medo da vida? Lá onde se perde a palavra e o corpo é atravessado por turbilhões de sensações inexplicáveis reside também os instantes que gostaríamos que fossem eternos. Lembramos mais dos instantes em que perdemos a compostura diante de um olhar que os intermináveis anos de dedicação ao trabalho.
Essa obsessão por uma métrica do desenvolvimento saudável de uma criança é também alimentada por adultos oprimidos pelo medo de viver. É de se lamentar que na história do pensamento psicológico a infância tenha surgido, dominantemente, marcada por instintos incestuosos e agressivos que precisam ser controlados.
Pobres criaturas humanas, tão sãs e tão arrazoadas, que hoje parece uma tragicomédia olharmo-nos tão técnicos, e sem rumos. Ali está o outro, o outro, um corpo cuja natureza é próxima da nossa e, portanto, dirá Spinoza, há uma grande possibilidade de ser produzido um bom encontro e sermos tomados por alegria. Tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes nos sentimos. Refinadíssimos nas técnicas de controle do intensivo para não “contaminar” nossos sofisticados selfs, somos primitivos na arte de nos contagiar com alegria através da composição de corpos, disfarçamos nossos silêncios constrangedores com comunicação. Talvez sejamos realmente loucos, porém, aprisionados nos hospícios do saber.
– Não, você não é livre. A corda que lhe amarra é um pouco mais comprida que a dos outros. É tudo. Você, patrão, tem um barbante comprido, você vai, você vem, pensa que é livre, mas não consegue cortar o barbante… – Vou cortá-lo um dia! – disse em tom de desafio, pois as palavras de Zorba me haviam tocado numa chaga aberta e me fizeram mal. – É difícil, patrão, muito difícil. Para isso a gente precisa de um bocadinho de loucura; de loucura, está ouvindo? Arriscar tudo! Mas você tem uma cabeça sólida que vai levar a melhor. O cérebro é um vendeiro, tem as suas contas: paguei tanto, tenho tanto em caixa, aqui estão os lucros, aqui as perdas! É um pequeno lojista prudente; não põe tudo em jogo, guarda sempre umas reservas. Ele não corta o barbante, não? Segura-o solidamente na mão, o velhaco. Se o barbante escapa, o coitado está perdido, perdidinho! Mas, se você não cortar o barbante, me diga que sabor pode ter a vida? Um gosto de camomila, de insossa camomila! Não é o gosto do rum, que faz a gente ver o mundo virado do avesso! – KAZANTZÁKIS, N. Zorba, o grego.