A vida não quer bem-estar, a vida não quer felicidade. Nós inventamos a felicidade, nós inventamos o bem-estar: anomalias modernas. A vida quer mais, a vida quer superar – vontade de potência. A vida não economiza, não há vida média, é voo ou queda. Só há o devir, única eternidade e único retorno. E porque é sempre diferente o desequilíbrio é constante. Diante de um fundo trágico há duas forças básicas, chamamos de alegria e tristeza, e se a gente não abraçar tanto uma quanto a outra… Não durma tarde, não beba muito, não goze muito… por outro lado trabalhe muito, estude muito. A sociedade silencia as paixões, as intensidades, e exalta os valores do meio, uma vida em equilíbrio, uma vida medíocre sem nada de intensidade. Mas a vida quer mais que o meio do rebanho. Seja um desequilibrado, só os desequilibrados veem algum deus dançante em si!
Não durma tão tarde, não acorde tão tarde, não coma tanto, não beba muito, não pense muito, não sinta muito, não fume muito, não goze tanto… por outro lado trabalhe muito, estude muito, esforce-se muito, tenha muita fé… É só você sair do automático e perceber que o campo social faz de tudo para silenciar as paixões e exaltar os valores do meio. Uma vida equilibrada conforme os valores do meio, uma vida medíocre, uma vida em comum mas também uma vida sem nada de intensidade. Intensidade é muito mais do que aquele prazerzinho que se sente quando recebemos um título apreciado pelo mercado de trabalho.
Tenha equilíbrio – recomendam-nos como uma espécie de fórmula universal para o sucesso, mas ninguém nunca nos deseja excesso de vida. É importante perceber o que costuma estar em relação quando se diz esse mantra existencial tão difundido como panaceia gratuita, não só dentro da formatação científica ocidental como também pelas diversas linhas de pensamento com tradição zen, geralmente importadas por ocidentais e vendidas em forma de terapias alternativas capazes de, no limite, tapar o buraco do ser, enfim, remediar a grande Falta (ver Nada Falta ao Desejo).
Equilíbrio prescrito, penso, como um contraponto para o esbanjamento, para tudo aquilo que vem carregado nos braços de um Dionísio e é capaz de incomodar, pela diferença, as formas de dominação. Ninguém deseja excesso de vida, o excesso e o esbanjamento costumam ser vistos negativamente diante de uma vida que está sob um céu cristão há milênios. Nesse sentido a vida passa a ser uma questão de gerenciamento da vitalidade e passa a depender de uma economia do desejo.
Mas à vida não cabe nenhum tipo de julgamento valorativo. Nietzsche nos leva a pensar que a natureza dos impulsos vitais é violenta e cruel, esse é o fundo trágico no qual estamos. Toda vez que colocamos máscaras visando disfarçá-la estamos desqualificando a natureza expansiva da vida. A vida se aceita ou se nega. Não há vida média, não há vida equilibrada.
O que você faz com a violência dos impulsos? Isso é uma questão sua, e só sua, de cada um. Não temos como nos ancorar, de antemão, em nenhuma referência. Se tomamos conhecimento da natureza excessiva dos impulsos ficamos menos dependentes de kits existenciais que nos prometem dietéticas para o equilíbrio. Reconhecer a crueldade e a violência dos impulsos não é afirmar um caos destrutivo entre nós – não se trata da crueldade do ponto de vista cristão nem da violência mortífera -, antes de tudo é uma afirmação de forças presentes na vida.
Não se trata do desequilibrado segundo a definição social. Para a sociedade e as escoltas mentais o desequilíbrio representa uma imperfeição das condições normais do indivíduo. Deram-nos até uma natureza que funciona por homeostase. Equilíbrio, recomendado às nossas vidas, em suas mais diversas manifestações, porque todos têm medo da intensidade. Equilíbrio porque temos medo de viver. Viver é intenso, é movimento, diferenciação, encontros com outros corpos que nos modificam o tempo inteiro.
Viver é caminhar no instável, desprovidos de sentidos e significados absolutos. Equilíbrio como método para obter sucesso em uma vida avaliada entre ganhar ou perder, mas viver não se trata de perder ou ganhar. Para Reich viver era uma questão de sentir, ele não prometia alívio do sofrimento aos seus pacientes, mas dizia …prometo que você vai sentir mais.
A alegria e a tristeza enquanto forças que aumentam ou diminuem nossa potência de existir (ver Por uma ética das paixões alegres) podem vir em intensidades extremadas porque contrariam o nosso regime de sensibilidades que em geral é capturado em formas limitadas de sentir, tudo que foge dessa limitação tende a ser visto como extremo – extremo não porque radical. Alegria extrema é quando endoideço “com um copo d´água”. Lembremos de Clarice Lispector, ela está a nos dizer alegrias – e tristezas! – extremas o tempo todo!
Já o equilíbrio tende a nos arrastar para uma vida mais indiferente, alegria e tristeza em pequenas doses e direcionadas para objetos de poder, é a invenção da felicidade para o homem moderno como dizia Nietzsche. A felicidade de se comprar um carro novo, a pequena e traiçoeira felicidade já que ela nos faz circular de falta em falta, de um referencial a outro.
O equilíbrio de vida está vinculado a uma armadilha muito atual. A qualidade de vida! (ver As armadilhas da qualidade de vida) Perceba que a própria vida passa a ser um atributo, algo secundário. A qualidade passa a ser o substantivo e a vida passa a ser um adjetivo, inversão catastrófica! Sutilezas, sutilezas com que o poder vai nos constrangendo diariamente, ditando as qualidades que uma vida deveria adotar, e ao mesmo tempo, desqualificando outras vidas possíveis. Manufatura diária da falta!
O equilíbrio é a imagem do homem de terno e gravata que para experimentar o vinho precisa checar se este está referendado pelas instâncias de qualidade e valoração dominantes, ele chega em seu lar, retira a garrafa de uma adega com temperatura controlada, acomoda-se em um ambiente adequado segundo o arquiteto, verifica… Enquanto o homem equilibrado cumpre seus ritos ao capital, Dionísio, desajeitosamente senta-se no chão, gargalha de si e da vida, vira a terceira caneca, sente-se tomado pela alegria e, ainda que saiba da ressaca, ele continua. A alegria daquele instante o impele, vira a quarta, a quinta, a sexta caneca. Amanhece e Dionísio está em queda livre, mas abraça a própria tragédia, foi de um extremo a outro, mas reconhece a alegria que não dura mais que momentos e é grato. O homem de terno e gravata já escovou os dentes, vai pegar o jornal e se queixa de dor de cabeça, desconfia do vinho da noite anterior que não estaria em temperatura adequada, está descontente com sua adega climatizada recém-instalada, ou talvez as ações da Petrobrás que estão caindo vertiginosamente, não sabe bem ao certo, o mal-estar é diário.
Esse é o ponto. Não negar a intensidade e perceber que o equilíbrio responde muito mais a um medo de viver, a um medo da intensidade e principalmente a um dever ser submetido a uma racionalidade dominante. Os equilibristas poderão dizer que isso é radical, irão querer justificar pelo negativo de suas positividades. Eles não irão negar que viver também implica em morrer, irão se agarrar a deus, a transcendentais, a valores absolutos para que o ego mantenha-se amparado pela ideia de um sentido final. Mas não irão abraçar a própria tragédia, não irão abraçar, com o corpo, que viver implica em morrer.
Cabe uma ressalva quanto às figuras do homem-de-terno-e-gravata e o bêbado dionisíaco. São figuras que devem ser tomadas com prudência, pois o próprio capitalismo já tem entre suas opções de vida a figura de um “desequilibrado”, porém, é um desequilibrado que está capturado dentro de uma lógica de obrigação àquilo que antes era considerado proibição. Não por acaso, o sexo hoje é muito mais exaltado do que propriamente vivido, se hoje temos uma boutique e uma cosmética do sexo, se chegamos ao ponto de sermos interpelados a consumir camisinha com sabor é porque o capitalismo já comporta um paradigma de experimentação daquilo que antes era visto como proibido, “coagindo-nos” a uma obrigação do gozo. Aqui não há verdadeiramente uma experimentação de afetos enquanto composição entre corpos sem saber o que vai acontecer, pelo contrário, há uma experimentação de um modelo de vida – que de certa maneira coage o indivíduo – que já vem pré-determinado, não se trata de ir descobrindo o que pode um corpo dando passagem a forças máximas, trata-se de assumir um clichê e atuar conforme o que dele se espera, é aqui que surgem os bêbados de boate que bebem para obter algum tipo de reconhecimento externo.
São tempos em que somos obrigados a gozar. Aqui não há experimentação propriamente dita, há coação. Não por acaso, o sexo hoje é muito mais exaltado do que propriamente vivido, se hoje temos uma boutique do sexo, se chegamos ao ponto de sermos interpelados a consumir camisinha com sabor é porque o capitalismo já comporta um paradigma de experimentação daquilo que antes era proibido.
A intensidade é a-significante, o que fazemos com isso? É preciso ter capacidade para selecionar os encontros, há forças destrutivas e criadoras. Fuganti chama isso de prudência. O equilíbrio promete mais segurança, uma vida tranquila (será?), mas ele cobra um preço: o temor à vida, à submissão a um sistema de racionalidade dominante, as moradas enganadoras que prometem tornar as coisas estáveis. Tranquilizar a vida!
* O título é provocativo, não deve ser lido sob uma perspectiva do dever. Mais fundamental é a compreensão das relações que estão implicadas.
Imagem: O viajante sobre o mar de névoa, 1818. Caspar David Friedrich.