“Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.” BARROS
Este trecho pertence a poesia “O menino que carregava água na peneira”, do livro “Exercícios de ser Criança”. Notadamente é um livro infantil, mas o poeta não escreveu somente para as crianças, escreveu para os blocos de infância em todos nós.
Deleuze e Guattari dizem que há uma zona de proximidade com a criança que coexiste em nós, e que não se trata de “lembranças” da infância, ou da criança que fomos e que antecedeu o adulto que somos, mas de blocos e devires criança.
Devir não é imitar a criança, ou forçosamente regredir e tentar reviver experiências infantis, devir é experimentar a potência do novo, das invenções, da curiosidade criativa, da leveza e suavidade presente nas mais simples brincadeiras : “tudo o que não invento é falso (BARROS). É traçar uma linha de fuga, alçar voo e evadir, lançar-se entre o desconhecido e bifurcar planos e territórios.
O devir é sempre minoritário e molecular, um desvio sempre inacabado, uma vizinhança, um quase e, portanto, a poesia de Manoel de Barros é o que Deleuze e Guattari em “Kafka: por uma literatura menor” chamam língua menor, trazendo em seus versos a voz de uma minoria, desterritorializando a linguagem do seu campo molar e dominador para invenção de novas forças:“noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento é mentira”(BARROS.
“Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.” (BARROS)
Nietzsche em “Assim falou Zaratustra” criou ao seu modo também um devir-criança e anunciou o movimento “das três metamorfoses”: o camelo, o leão e a criança. A criança para Nietzsche é o próprio devir, que recusa o que foi e o que será e assegura seu vir-a-ser através da experimentação afirmativa da vida.
“Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.” (BARROS)
Para Nietzsche, a inocência e o esquecimento são cruciais no devir-criança, pois a criança não concebe o erro e continua a brincar em sua inconsciência, não existindo aí um passado para negar, mas somente o presente para experimentar num movimento sempre para frente. O esquecimento para Nietzsche é um ganho, uma força, uma arte que permite a invenção por não estar presa aos modelos de um tempo passado: “Não posso mais saber quando amanheço ontem. Está rengo de mim o amanhecer. ” (BARROS).
“Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um vir à existência e um perecer, um construir e um destruir sem qualquer imputação moral em inocência eternamente igual. E, assim como brincam o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente ativo, constrói e destrói com inocência – e esse jogo joga-o o Eão (Aiôn) consigo mesmo” (NIETZSCHE)
Já que tudo está em constante movimento, e nada permanece o mesmo, o que nos resta é a suavidade, inocência e esquecimento do brincar, inventando novos começos e modos de viver, dizendo um SIM peralta, curioso e leve à vida
Ao final, talvez possamos pedir licença para Manoel e alterarmos o título do livro de “Exercícios para ser Criança” para “Exercícios para devir-criança”
“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.” (BARROS)