Filosofia

Beethoven, Revéillon, Ano Novo… por uma lentidão do tempo

Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Oh amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
e mais alegre!
BEETHOVEN, Ode to Joy (9ª sinfonia)

Hoje faz 245 anos de Beethoven, entre sua vasta obra musical, sem dúvida, consta sua Nona Sinfonia como obra-prima. Uma música que atravessa e atravessará os tempos. O último movimento contém parte de uma poema de Schiller intitulado “À alegria”, daí, também, fazermos referência à Nona como “Hino à Alegria” ou “Ode to Joy”.

Em tempos que quase já não se escuta música, quando a música tem sido incorporada mais como parte do barulho devastador de um cotidiano, preenchendo um tempo prenhe de demandas e tarefas com pequenas frases que repetem a imbecilidade ao esgotamento, é necessário, é necessário parar toda demanda do mundo para sentir a potência de uma Nona Sinfonia.

A gente ainda escuta as músicas que a matéria do mundo toca? Que música os ventos tocam? E os pássaros? E as folhas secas que passeiam pelas ruas desertas? E as árvores que balançam? E a chuva, quantas músicas possíveis tocam as chuvas? A chuva que cai quando estamos aguardando alguém que amamos, a que cai quando alguém nos deixou, a que cai enquanto sentimos saudades. Beethoven, surdo ao barulho do mundo – mas não à musicalidade da vida -, certamente escutou coisas que se imiscuíram com sua vida para criar a Nona Sinfonia.

De repente nossos olhos se tocam com os de outras pessoas e saímos do tempo bruto da velocidade, sentimos a lentidão escorrer no instante em que somos tocados, é na lentidão que somos tocados.
Aos amigos de regimes de sensibilidade estranhas, estranhas sensibilidades à ordem experimentativa referendada pelos especialistas do mundo, aos amigos cuja “pele é o mais profundo”, como dizia Paul Valéry, frase esta muito admirada por Deleuze, pois nos remete a um corpo enquanto potência experimentativa, o Letra e Filosofia encerra o ano com um convite para criar um pequeno ritornelo: sentemo-nos, na nossa lentidão, para escutar e sentir uma música.

Paremos o tempo das tarefas, desliguemo-nos das quinquilharias tecnológicas que nos invadem com demandas que vamos atendendo sem nem perceber. Como vamos experimentar, sentir e perceber aquilo que nos compõem se estamos com os poros entupidos com agentes que nos roubam os sentidos e os põem para trabalhar a favor de um financiamento da vida? Cada ano que passa o que temos feito é nos atarefado muito mais, mais do que os anos que passam é o espírito de criança que está morrendo cada vez mais depressa, soterrado nas exigências de uma vida cada mais profissional e técnica.

Dentro de um contexto de uma temporalidade cada vez mais técnica, Paul Virilio diz que Toda invenção tem o seu acidente. Sempre escutamos que a vida passa rápido demais, a gente diz isso sentindo um pouco de calafrios de nossos medos e covardias por termos “desperdiçado” a vida. Mas a vida não se desperdiça, vida desperdiçada só acontece dentro de uma lógica de produtividade, é justamente nos ocupando cada vez mais que desperdiçamos a vida, para aproveitar a produtividade. Mas viver não é produzir, é criar, e criação se dá com lentidão. Viver depende de lentidão para tocar e ser tocado pelos encontros com o mundo, é degustar vagarosamente, tal como se beija apaixonadamente tentando tocar a alma do outro com a língua.

São os ociosos que mudam o mundo, os outros estão ocupados demais. – A. CAMUS

Sejamos rebeldes à velocidade paranoica, dos dias, das semanas, dos meses, dos anos. Saibamos cultivar a lentidão, e é necessário lentidão para escutar a musicalidade da vida. A lentidão é uma das velocidades necessárias para que o desejo possa compor sinfonias.

Nosso “Réveillon” está fora de um tempo corrompido pela urgência das demandas, das tarefas, de um tempo que vale dinheiro. Nosso “Réveillon” é preenchido no nosso ritmo. Nossos começos e términos se dão em qualquer ponto e nosso tempo vale composições com a matéria do mundo a fim de experimentar ritmos mais alegradores, o entristecimento é sempre possível, a ponto de ficarmos paralisados por forças tristes, mas persistimos e vamos em busca de estranhamentos, de qualquer coisa que nos coloque em ritmos mais afinados com os nossos desejos.

Nossa razão, sempre retardada ao que nos acontece, precisou inventar um tempo contado em anos para podermos gritar por uma vida nova, pode ser que façamos bom uso disso, mas vamos além, não queremos ficar esperando 365 dias para sentir o novo. Queremos um novo que não se conta nos meses nem nas versões, nossa novidade é diferenciação. Tudo pode ser vivido com tonalidades de novidade desde que saibamos cultivar uma certa surdez ao barulho obsessivo do mundo e uma escuta atenta aos sussurros que acontecem quando as moléculas do nosso corpo entram em contato com as moléculas de outros corpos, que musicalidade tem as composições que fazemos com a vida?

Enfim, criar um refúgio sem um tempo convocatório. Sentemo-nos confortavelmente, criemos um ambiente sem a luz branca da produção. Deixemos a Nona Sinfonia nos preencher em um volume que não é o dos carros-de-som-de-boy e nem dos zumbidos que espalham modinhas de dentro do bolso enquanto se anda pelas ruas. Algo estranho se passará e já não seremos mais os mesmos, e nunca somos os mesmos, e assim se passa tantos e tantos “Réveillon” na surdina dos instantes. É necessário ter uma escuta de Beethoven para perceber essas diferenciações, são com elas que o desejo orquestra sinfonias. São esses momentos que iluminam uma vida, o momento que um pensamento nos possui, o momento que o barulho da chuva nos traz recordações de rostos e corpos que passaram por nós, o momento que nos expressamos sem pedir licença, o momento que sentimos algo vibrar diferente em nós e ainda não temos nome para aquilo e pouco importa e gostaríamos que aquele instante durasse uma vida inteira e… como fazemos festas com esses instantes.

O nosso “feliz natal” e o nosso “feliz ano novo” são lucidamente cínicos, é meramente o simbólico de alguém que entra na festa para beber champanhe, rir e fazer de conta que o branco vai renovar o espírito do mundo. Um ano repleto de… que 2016 seja… é tudo o que desejamos com uma gargalhada muito cínica a todos os nossos leitores e amigos. Mas com alegria verdadeira mesmo, agradecemos as ressonâncias e os bons encontros que nesses poucos meses foram possíveis, que tenhamos um ano novo menos produtivo, menos lucrativo, menos urgente, que se vendam menos carros, menos celulares, que tenhamos lentidão e mais musicalidade afetiva.

Enfim, paremos para escutar uma música, a Nona Sinfonia de Beethoven.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.