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A estética da existência como ética em Nietzsche
Se os helenos foram capazes de suportar a existência, foi porque esta foi transformada pela arte, que a intensificou e afirmou. A cultura grega pré-socrática elevou a vida em seu valor supremo, acima de qualquer avaliação metafísica, moral e religiosa. Esta última, para os helenos, foi eminentemente artística.
Por estar desobrigada de compactuar com uma fastidiosa retratação servil da realidade, essa estética da existência que encontra na arte a sua força maior, relaciona-se com o que representa o mais próximo do desejo do homem em sua condição de um “eu-nós” que se ajusta na multiplicidade complexa de hierarquias entre energias intra-psíquicas presentes no corpo (Giacóia Júnior, Cinco aulas sobre Nietzsche).
O efeito da arte dentro da perspectiva nietzschiana dissolve o peso das convenções da civilização, substituindo-as por um sentimento de unidade, a certeza de que apesar de todo o sofrimento que possa estar presente na vida, esta pode ser tomada em uma aparência repleta de alegria. Por assim dizer, o homem pode ser salvo pela arte, e através desta salva-se a vida nele.
A relação da arte com a vida no pensamento de Nietzsche implica em uma ética no processo de subjetivação em função de uma estética da existência na qual permite ao sujeito desenvolver uma arte de viver que favorece a si. Esse modo de experimentação da vida se sustenta em uma crítica dos valores enquanto critérios universais que condicionam a experiência da vida e limitam as possibilidades de criação, na medida em que estes passam a ser vistos como produções humanas, demasiadamente humanas, como apontado ao longo da obra de Nietzsche.
É importante deixar claro que a relação da vida e da arte no processo de subjetivação não é uma tarefa somente individual. Dias (2008) aponta que uma estética da existência não se trata apenas de relações individualistas, o outro é fundamental nessa ética, pois a elaboração estética não é um exercício solitário, uma vez que a transformação de si está visceralmente ligada com a transformação da vida. Assim, o homem como obra de arte, necessariamente, trabalha tanto para uma existência em sociedade, como para a sua própria condição de sujeito singular. Por não tratar apenas da relação consigo mesmo, essa ética implica em uma organização da existência onde estão interligados a arte e a vida convergindo para uma arte de viver. Dias (2008) entende que a separação entre vida e arte é absurda, uma vez que a estética da existência instrui-se com as artes enquanto produtos ao longo da história.
Nesse sentido, a vida enquanto obra de arte na qual o homem é o próprio artista que se faz ao se deparar também com outras obras de arte, oferece maiores possibilidades de escolhas pessoais, em contraposição aos limites impostos pela tradição moral, religiosa e do saber que sustentam valores imutáveis e universais. Foucault (1994b, apud Nascimento), em seus estudos que buscaram esclarecer sobre a problematização do surgimento do sujeito ético nas várias faces da vida cotidiana, na qual observou a atuação dos mecanismos e das relações de poder sobre a constituição do indivíduo, também corrobora para uma estética da existência orientando uma ética que permite uma criação do viver de acordo com o sujeito do desejo, do contrário, conforme aponta: “A busca de uma forma de moral que seja aceitável para todos – no sentido de que todos devem submeter-se a ela – parece-me catastrófica.”
Da forma como se configura a ética atualmente, o homem está sujeito a se constituir de acordo com princípios universais, embora sejam eles marcados pela efemeridade, ambivalência e incerteza que agudamente sustentam a ética na pós-modernidade. Mesmo a marca da efemeridade é um efêmero que ainda quer ser universal, quer ser palavra de verdade; nesse sentido os valores ainda o são da ordem metafísica (Martins, 2006), estabelecem um domínio rigoroso do desejo que deixa a vida do aqui e agora marcada por uma negação da vida. Assim como o foi na modernidade, a vida de homens e mulheres no momento atual, é marcada pela constante busca de ideais que são tidos como adequados para todos.
O pensamento de Nietzsche contribui para a superação desse niilismo e a arte em sua relação com a vida. Essa arte não é aquela que diz respeito à idolatração de “gênios” e objetos, mas é uma arte para dar sentido à vida, criar uma ilusão que se sabe ilusão, e está em profunda conexão com o homem na sua experiência do viver. Dentro dessa perspectiva, a ética que surge permite pensar o homem como obra de si mesmo. O seu processo de subjetivação é de privilégio de uma ética que não está sob os domínios da interdição de leis universais, mas de um princípio de estilização da conduta, de uma estética da existência que daria forma e sentido à vida em infinitas perspectivas.
Essa ética implica na coragem do homem de abdicar da idéia de que a existência já é dada, determinada e configurada por um suposto saber legitimador. Ao superar essa tradição o homem passa a pensar que precisa criar a si mesmo em constância.
Tais apontamentos não fundamentam uma ética nova, pelo contrário, a ética aqui surge na medida em que não define o que devemos fazer nem se pretende ser universal e válida para todos os tempos e circunstâncias. Essa ética é uma forma singular de viver e indivisa à alteridade, se sustenta por uma estética da existência e é produzida com o devir, com as experiências, com escolhas que são possíveis e outras não, das quais o homem relaciona-se com esses elementos e tem a liberdade de jogá-los fora imediatamente caso não os sirva.
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