Filosofia

A consciência é uma doença

Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado consciente vêm inúmeros erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir antes do que seria necessário. Pensam que nela está o âmago do ser humano, o que nele é duradouro, derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza dada! Negam seu crescimento, suas intermitências! – NIETZSCHE, A Gaia Ciência, aforismo 11

Algo pensa em nós, algo age em nós. A maior parte do tempo é um estranho agindo e pensando em nós. Só depois, bem depois, vem o Eu tagarelar sobre o que já aconteceu. E temos a ousadia de dizer “EU…” com fôlegos soberanos – empurramos um Eu na frente de tudo, mas ele nunca é nem foi autor de nada. Sob o risco de nos tornamos um neurótico saudável, não convém levar o Eu muito a sério. As palavras de um neurótico prestes a se quebrar, o protagonista de “Notas do Subsolo” de Dostoiévski declaram, a consciência é uma doença. Uma doença incurável e, por outro lado, desfazer-se do Eu nos coloca à mercê das escoltas médicas, psiquiátricas e psicológicas, afinal, o capitalismo precisa de um solo fértil por onde extrair sua mais-valia, curiosamente, o psicanalista também precisa, e muito, de um Eu gordo e forte.

Não há receita para desfazer um Eu, um bom começo é deixar de estabelecer conexões só com pessoas conhecidas e lugares familiares, comer, principalmente, muita poesia, literatura e filosofia e evitar cair nas armadilhas dos saberes que falam através de um Eu também caem muito bem. Até drogas e álcool, até masoquismo, até constrangimentos, até experimentações com os olhos, com a boca, com a pele, até… enfim, você está por sua conta e risco por aqui e boas doses de prudência nunca devem ser desprezadas porque à espreita, à espreita tem sempre um vigia, um dedo-duro, um policial, um homem do bem para capturar quem sair nu por aí sem um Eu.

Se não podemos abdicar do Eu cuidamo-nos para que ele não faça do nosso corpo o que o cristianismo fez da carne para o espírito. Cuidamo-nos para que o Eu não faça dos nossos desejos meros penduricalhos que com o tempo se transformam em fantasmas para nos assombrar. Que o corpo seja um templo mas um templo sem torre de vigia.

Resta-nos saber lidar, e esse saber lidar deve conter boas doses de ridículo frente às peças de teatro que o Eu gosta de representar e pedir por reconhecimento. Com o tempo o Eu é enfraquecido, um enfraquecimento necessário para que o corpo em nós possa liberar suas expressividades ainda não conhecidas. Enfraquecer o Eu é enfraquecer a censura em nós e no outro. Por assim dizer, fazemos do Eu um aliado na medida em que o colocamos em seu devido lugar, o de uma pequena razão (ver Pensamento representativo, corpo, forças…). Tornar-se um clandestino perante o próprio Eu para só então começar a amar, a pensar, a agir, enfim, saber desfazê-lo para só então começar a falar em nome próprio.

Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso corpo sem órgãos, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide. DELEUZE & GUATTARI, Mil Platôs, Vol. 3

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.