Quem disse que um livro, um filme, uma música, enfim, uma obra deve ter – e nos oferecer – significados? Mania neurótica de interpretação do mundo! Não que não possa interpretar, mas que isso não seja a regra. Pode se ir mais longe, quem disse que a vida deve ter um significado? – Nada além do pensamento sustentado por uma visão antropocêntrica.
Sou daqueles que acharia um sacrilégio assistir a um filme de Ingmar Bergman em meio a pipocas, bebidas gaseificadas e um outro tagarelando ao meu lado. Sou daqueles que diante da 9ª sinfonia de Beethoven precisa sentar e estar presente diante dela. Sou daqueles que quando perguntam do que se trata determinado livro, como os de Clarice Lispector, não ousaria dar uma resposta.
Basta, basta de querer exigir da vida um significado a todo custo. Isso cansa. É preciso surfar as ondas das intensidades, sentir os movimentos, permitir que elas nos incomodem, que nos deixem em prantos, em deleites e até sem nomes para se salvar.
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A gente costuma ir ao encontro de um filme ou de um livro, de uma obra, como se ela tivesse (que ter) um início, um desenrolar e um fim. Preocupados em entender, interpretar e significar perdemos o melhor da viagem, aquilo que a obra pode provocar em nós em um nível anterior ao nosso modelo interpretativo-significativo – o nível das intensidades. Não há nada mais desagradável do que querer arrancar significados a todo custo de um filme desses que nos deixa em suspenso, flutuando por sensações únicas e indescritíveis que só as grandes obras nos proporcionam. É desprezar a potência de uma obra em favor de um significado qualquer que possamos dizer em rodas de família ou de amigos. A interpretação da obra é a banalização do êxtase em cadeias de significados.
Quem nunca se sentiu arrasado e sem palavras, por vezes durante dias, semanas… depois de um filme de Ingmar Bergman, Buñuel, Lars von Triers, Tarkovisky, Béla Tarr e tantos outros artistas capazes de provocar rachaduras no tempo e no espaço permitindo que flutuemos por intensidades que não conseguimos nomear, mas sabemos, estão ali, acontecendo, atravessando-nos de fora a fora? E que desprazer, quando nesses momentos, o outro ao nosso lado diz Nossa, que filme sem pé nem cabeça!!
Uma obra – um livro, um filme, uma pintura, uma dança, etc. – não necessariamente – não necessariamente! – é para nos oferecer sentidos ou significados, pode ser um meio para que entremos em contato com um fora, com o caos e então possamos sair de lá com algum sentido – ou não! Tarefa nem sempre fácil, mas fundamental para refrigerarmos e soltar as amarras de nossas vidas sedimentadas em empregos, consumo e lógicas familiares.
Podemos tomar um livro ou um filme como um corpo do qual encontramos, e desse encontro podemos nos afetar, a obra, nesse caso, produz algo em nós, e esse algo produzido em nós pode nos levar a uma criação (uma ação) mais potente caso tenhamos uma afetação que nos potencialize, por outro lado, como é que podemos ter uma afetação potente se nos debruçamos sobre uma obra como um ruminante de significados ou signos a serem decifrados?
Assistir a um filme ou ler um livro pensando em captar um suposto sentido ou significado que estaria ali, em estado latente, apenas aguardando nossa cognição desvendá-lo, exigir que o artista nos proporcione uma história lógica e concisa é como fazer sexo pelo significado da reprodução e perpetuação da espécie.
Entretanto, identificar e significar é a maneira mais comum de lidarmos com a vida. Desde pequenos somos domesticados a uma lógica da razão. Podemos nunca ter tido contato com a filosofia, no entanto, Platão, Sócrates, Kant, Descartes… são alguns dos filósofos dos quais seus pensamentos estão nas entranhas de nossas vidas, diante das intensidades a-significantes há Platão em nós querendo essencializar o devir!
A arte é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras. DELEUZE
Ler um livro para responder a perguntas que serão feitas, assistir um filme para nos entreter, aprender história da arte para saber o significado de um quadro. Em outras palavras, estamos sob uma cultura que nos interpela a significar as experiências o tempo inteiro, e em linguagem coerente, como se a vida fosse uma sucessão de encadeamentos lógicos. A psicanálise é um exemplo disso, a psicanálise foi longe demais com a relação significado-significado, tão longe que o inconsciente passou a ser questão de interpretação – um especialista interpretador!
Quando não encontramos o significado, se não conseguimos dar um sentido, tendemos logo a acusar algo externo a nós, tendemos a todo custo nos livrar daquilo que em nós não ressoa significado – a estranheza. É quase uma obrigação apontar um sentindo para a vida, e acho necessário chamar atenção que obrigar a vida a ter um sentido é diferente de construir sentidos para a vida. Todos nós construímos sentidos, mas quem disse que temos que dar sentido para o nosso estar no mundo a qualquer custo? A sensação vale por si mesma!
Estamos prenhes de significados, conhecimento, razão, temos um nome para tudo. O menor ruído de intensidade que não se consegue nomear já se torna motivo para buscar um especialista que faça isso por nós. Tendemos a não suportar paradoxos e contradições – fazemos o mundo desaguar na dialética -, apesar das contradições e dos paradoxos serem justamente o que há de mais “coerente” em uma vida. A consciência apenas aparentemente nos dá os trilhos, uma história pessoal para nos manter nas teias da identidade e os diversos papeis sociais – mas estamos longe de compreender a consciência enquanto um papel de parede com que escondemos os fluxos de forças que nos atravessam.
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. (…) NIETZSCHE, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral
A consciência é uma doença – diz o personagem de Dostoiévski em Notas do Subsolo. Contudo, o pensamento ocidental é marcado justamente por um homem dotado de razão capaz de agir com coerência em um mundo desencantando, pois iluminado pelas “luzes” dos saberes. Ter consciência das coisas, adoramos isso, como se o mundo estivesse aí como algo que esconde significados que devemos descobrir. Nós inventamos os significados, no limite, precisamos de mentiras para sobreviver.
Reduzir ao significado é a maneira de pensar, ver, sentir, escutar, estar no mundo… que vingou, principalmente, no mundo ocidental. A lógica das almas, dos significados, dos sentidos, enfim, da razão, e no outro polo a condenação do corpo, das emoções, das paixões, das sensações. Diz-se que é bonito uma pessoa sensível, desde que a emoção dela esteja claramente direcionada para um ideal maior, por exemplo, chorar pelo filho, por outro lado, se a emoção não nos fazer saltar um significado aos olhos então é loucura. Seriam inúmeros os exemplos de como estamos constantemente querendo extrair sentidos e significados para as coisas do mundo.
A arte do confessionário, “fala-me o que tu sentes”, não é uma arte só do padre, mas de muitos padres. É a arte de capturar a vida e fazê-la falar na ordem de um discurso que seja compreensível. É verdade que somos assim, habitamos uma linguagem, somos seres de linguagem… o problema é querer reduzir a vida à linguagem. Viver ultrapassa os limites do entendimento, diria Clarice Lispector, assim como o mundo e as coisas ultrapassam os limites do nomeável.
Libertar-se desse peso de querer capturar a vida em um sentido ou um significado a todo custo é abrir-se para muitos outros modos de vida possíveis. A experimentação passa por aqui. Quando nos reduzimos à lógica do sentido e da razão podemos ser muito inteligentes, pois inteligência é saber responder bem à demanda do contexto em que vivemos, um contexto onde tudo está pendurado e engavetado em devidos significados, por outro lado é estar fechado e empobrecido de intensidades, em outras palavras, perdemos o melhor da vida, a potência, a força, os sussurros das moléculas em nós. É como se vivêssemos contidos dentro de uma caixa onde tudo encontra seu devido significado e sentido já dados, não conseguimos sentir a vida que se passa fora da caixa.
Experimente ir ao encontro de uma obra despido das estruturas identitárias, não procure por origens nem fins, que as coisas não tenham que estar encadeadas nas articulações da linguagem significante, que a obra possa nos afetar mais do que carregar um significado, que a arte tire nossos mundos dos trilhos, nos deixe sem nomes para nos salvar das estranhezas e intensidades, pois não é dever da arte cumprir com os deveres da coerência. Tomamos a obra enquanto uma produção desejante que nos afeta enquanto produz algo em nós mesmos – produzir algo em nós, é aqui que a obra nos é fundamental para não ficarmos sedentarizados nos modos de vida dominante.
A vida não pode ser demarcada com origens, meios e fins, chegamos e ela já está aí, partimos e ela continua aí, fora da consciência e da linguagem nada nos salva do mistério de existir – um mistério sem algo a ser desvelado. Não se trata de negar os significados, trata-se de não se deixar amarrar pelos significados, trata-se de ir tateando, tocar e deixar-se ser tocado, trata-se mais em sentir do que querer extrair dos sentidos um decifrado – não há nada a ser decifrado! Diante de uma bela obra a gente não exige significados, a gente inventa e cria significados que possam nos intensificar ainda mais, e para uma leveza da alma saibamos que no fundo o significado é uma invenção, somente uma invenção.
A minha maneira de compreender um livro é que este desapareça da vista, é mastigado vivo, digerido e incorporado no sistema como carne e sangue, que, por sua vez, criam novo espírito e remodelam o mundo. – Trópico de Capricórnio. H. MILLER