Fora o deboche,
o poder não pode rir.
O poder não suporta o riso.
O poder não suporta a alegria.
Riso e alegria desestabilizam.
O que nos faz rir no meio de todas
essas catástrofes? DELEUZE, G.*
Conseguir rir do fascismo não através da ira, da vingança e da morte, mas da vida, que arma poderosa é essa que tão poucos foram capazes de usá-la? Ninguém conseguiu rir tão bem não só do fascismo ideológico das guerras, mas também daquele que permeava através de processos que começavam apoderar-se da vida através de uma instrumentalização bestial do corpo tornado ferramenta de trabalho, como Charles Chaplin o fez através de vários longas e curtas criados ao longo do século XX. O Grande Ditador (1940) talvez seja a película que mais escancarou as faces ridículas do poder.
Não se trata de qualquer riso. De uma situação onde o riso irrompe pode se esperar vários efeitos e significados. O riso pode ter efeitos terapêuticos, desorganizar nossas armaduras internas – nos sentimos mais leves!, aliviar o sofrimento e a tragédia, pode ser desencadeado quando nos sentimos tocados pela beleza ou vir acompanhado de lágrimas ou choro, há ainda o riso que vem como deboche e depreciação que são formas de mascarar o ressentimento e a ignorância – tipo este que é tão presente no que se chama de “humor” atualmente. Não pretendemos esgotar todas as possibilidades. O riso, o silêncio, as lágrimas, os olhos, os cabelos da mulher amada lançados ao ar… quantos infinitos nos dizem?
(…) deixei de lado as afecções exteriores que se observam em afetos como o tremor, a palidez, o soluço, o riso, etc., porque se referem exclusivamente ao corpo, sem qualquer relação com a mente. (…)” SPINOZA, B. Ética, III.
Spinoza não nos deixa tão claro o que seria o riso, parece que para ele o riso se equivale a uma manifestação do corpo sem relação com a mente, assim como o soluço, o rubor, o susto, etc. Pode estar relacionado com a alegria quando não em excesso, no entanto, o que ele deixa claro é que existe um mau riso que depende do afeto do ódio, é o que ele chama de escárnio.
Faço, entre o escárnio e o riso, uma grande diferença. Com efeito, o riso, tal como a brincadeira, é pura alegria e, portanto, desde que não seja excessivo, é, por si, bom. SPINOZA, B. Ética, IV, prop. 45, escólio 2.
Sabemos então que o riso, em seus múltiplos sentidos, pode estar tanto relacionado aos afetos da alegria como da tristeza. Conhecemos bem o mau riso visto que o nosso pequeno fascismo do dia a dia é repleto desse tipo de riso. Escárnio ou deboche é o riso desencadeado pelo ódio dos que só conseguem rir das diferenças e do rebaixamento dos modos de vida do outro.
No entanto, conhecemos pouco daquilo que se poderia chamar de bom riso, ou de um riso cuja força extraordinária é capaz de dizer Sim! à vida até mesmo diante do trágico. Este riso é uma força tão extraordinária que é capaz de irromper em nós em meio às lágrimas, e ficamos com o efeito misterioso do intempestivo. Se a tristeza é o afeto mais abundante, por tabela, esse tipo de riso também é muito mais presente que aquele capaz de expandir a vida, aumentar o nosso tesão de viver e nos dar uma sustância vital para criar e se alegrar apesar de nós e das condições de nosso tempo.
Mas vale mais estar doido de alegria do que de tristeza; vale mais dançar pesadamente do que andar claudicando. Aprendei, pois, comigo a sabedoria: até a pior das coisas tem dois reversos, até a pior das coisas tem pernas para bailar; aprendei, pois, vós, homens superiores, a afirmar-vos sobre boas pernas. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.
É necessário ultrapassar o riso enquanto elemento de humor restrito aos aspectos do entretenimento, das ironias e dos preconceitos, por assim dizer, um humor dos homens tristes. E ninguém menos que Nietzsche falou tanto sobre o riso enquanto uma força da vida capaz de desestabilizar, destruir e criar. Toda sua obra de certo modo é um grande riso ao conhecimento sério que em outras palavras é o próprio homem e a própria vida tornados sérios e pesados. Assim, podemos pensar múltiplos aspectos do riso: o riso ético, o riso político, o riso de resistência, o riso, enfim, como uma máquina de guerra contra as forças entristecedoras que ameaçam engolfar cada espaço da nossa existência.
Rir alegremente é uma força disruptiva sob a atmosfera niilista e carregada de ódio da qual nos encontramos. O riso alegre expressa afirmativas de viver com suas nuances de expansividade da vida e do vivo, de si e dos outros visto que a potência de viver se dá por contágio. Não é fácil, não por acaso que o poder age entristecendo os corpos. Sabemos muito sobre escarnecer e debochar – tripudiar sobre o mau encontro do outro -, mas pouco sabemos contagiar através do riso. Se o poder só pode algo diante da impotência e o riso, como Chaplin já o demonstrou, é uma arma capaz de desnudar o ridículo do poder, diremos que um certo tipo de riso pode ser um dos mais potentes afetos, ético e político, para uma arte de viver contrária aos modos fascistas.
Tudo que fazemos com a força desse riso fortalece os nossos modos de viver e se relacionar. Contudo, somos demasiadamente sérios. Por que levamos nossas dores e nossas inadequações tão a sério? O que fizemos de nós para fazer da sexualidade algo tão pesado? Por que a educação e a pedagogia não riem? Precisamos de um palhaço de palco para ter motivos para rir? Rir diante das próprias absurdidades da existência, nossas fragilidades, nossas falhas e erros, nossos sofrimentos edipianos tornados causas das mais sérias… quem saberá viver e rir alegremente apesar de tudo?
O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes? DELEUZE, G.*
Somos estimulados demais à seriedade, passamos por uma pedagogia do sério desde os nossos primeiros passos. Aos primeiros toques capazes de nos provocar estados de graça vamos descobrindo também os primeiros temores, medos e receios. Os discursos se organizaram tanto contra o prazer que os padres fizeram da sexualidade um pecado, e até os mais cultos – Freud? – de certo modo reforçaram esse pensamento enquanto objeto a ser desvendado para nos revelar possíveis cura. A criança vai pouco a pouco perdendo o riso à medida que vai ganhando postura e assim, amarrando-nos uns sob os olhares dos outros, tudo em nós vai criando autocontrole para não perder as (com)posturas.
Quantos amores, danças, alegrias e pessoas poderíamos conhecer e nos conjugar se não nos levássemos tão a sério? Em tempos onde nosso Eu é condecorado por um narcisismo sem igual, tudo em nós é inflado de seriedade, perdemos o acontecimento com receio de nos desequilibrar das posturas de um Eu que se leva a sério demais e não suporta a inadequação. E quem define o adequado do inadequado? Se pudéssemos por instantes tirar o peso do nosso Euzinho e assistir as tramas de nossas errâncias, como a um filme, perceberíamos que, se não somos seres afeitos ao riso, certamente somos seres risíveis!
O riso enquanto força de vida e, portanto, resistente ao fascismo cotidiano, não se confunde com o riso fácil – e sem graça – dos rostos coagidos pelo dever à felicidade. Quanta tristeza é necessária para moldar um riso de plástico? Não que o riso entre familiares em um almoço de domingo não seja bom, mas do que ele é capaz? Não seria inofensivo demais? É preciso dizer: o riso mais potente talvez transborde em meios silenciosos. A gargalhada pode até ser interessante, mas nos momentos em que nos sentimos tomados por uma alegria plena conosco, com os outros e com as coisas, tudo em nós ri sem gargalhar. Não é a expressão comportamental que define o riso, mas determinadas forças conjugadas com afetos que produzem esse efeito vitalizante em nós.
Enquanto força que nos impulsiona e nos transborda, não há o que fazer quando somos tocados pelo riso, estamos na pista de dança e o olhar do outro já não nos incomoda. As cristalizações neurotizantes da vida se dissolvem. Queremos definir esse riso como a alegria acompanhada de uma ideia capaz de se conectar com outros corpos e produzir estados de dança e graça consigo mesmo, com os outros, com as flores, as nuvens, as coisas, o universo inteiro.
O pensamento é fundamental para produzir riso, sentimo-nos agraciados à medida que compreendemos a natureza das coisas e de nós mesmos. Inclusive, no terceiro gênero de conhecimento, da alegria que surge do que Spinoza chamou de beatitude, estamos inteiramente tomados por um estado de graça – e o que é a graça senão o transbordamento da alegria numa espécie de riso amoroso conosco e com os outros seres?
Lemos autores como Becket, Kafka, Nietzsche, Deleuze, Guattari, … também para rir, o academicismo não consegue ler tais autores porque é sério demais para enxergar que o pensamento se produz como uma dança. Depreende-se riso da própria vida, desde que ela não seja feita um caso sério a ser cuidado pelas instituições de sequestro da vida (Foucault). Se temos riso temos a força mais fundamental para produzir bons encontros. Capaz de desfazer toda neurose da vida, há risos tão potentes que encaram até mesmo o fascismo de frente sem responder na mesma medida de morte.
O intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura e rangente, difícil de pôr em movimento; chamam de “levar a coisa a sério”, quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina — oh, como lhes deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica “séria”! E “onde há riso e alegria, o pensamento nada vale”: — assim diz o preconceito dessa besta séria contra toda “gaia ciência.” — Muito bem! Mostremos que é um preconceito! NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Aforismo 327.
Que motivos precisamos para rir? Ora, não há motivo maior do que nós mesmos! Somos o que há de mais risível na vida, somos a criatura que persegue ideais como forma de encontrar a vida sem se dar conta de que na verdade está fugindo da própria vida. Zaratustra tem o riso como forma de desaprender, é uma maneira de destituir a gravidade da verdade que nos tira da leveza de viver.
Chegar ao ponto de conseguir rir de si mesmo, abraçando o ridículo, as dores e o sofrimento como aspectos da vida, não só é um sinal da mais grande saúde, como também uma força capaz de desnudar o poder e colocá-lo frente a frente com o seu próprio ridículo, tal como na parábola do Rei Nu.
Uma coisa eu sei, porém – aprendi-a, certa vez, de ti mesmo, ó Zaratustra: quem quer matar do modo mais cabal, esse ri. / ‘Não com a ira, se mata, mas com o riso’ – assim falaste tu um dia. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra, Parte IV.
*(…) Desconfio dos meus amigos. Mas é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer que façam, vou achar muita graça (…) Ser amigo é ver a pessoa e pensar: ‘O que vai nos fazer rir hoje? O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes?’ (…) DELEUZE, G. O Abecedário. F de Fidelidade (vídeo)