Texto atualizado em 21/05/2017
Queremos perguntar o que as crianças podem nos dizer sobre os adultos que estamos nos tornando. Uma criança cintila, suas intensidades irradiam pelos seus modos de agir sobre o mundo, mas as formas adultas parecem perdurar em escuridão e paralisia. Os modos mudam, mas a coerção como base da educação nunca saiu de moda, ameaças, punições, jogos emocionais… não é por acaso que crescemos e somos embaraçados demais para lidar com compreensão, amor, espontaneidade; por outro lado, práticos demais para julgar, praticar todo tipo de trapaça emocional e odiar. A questão não é somente o que temos a ensinar às crianças, mas também o que temos a aprender com as crianças.
A criança não pára de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente. Os mapas dos trajetos são essenciais à atividade psíquica. O que o pequeno Hans reivindica é sair do apartamento familiar para passar a noite na vizinha e regressar na manhã seguinte: o imóvel como meio. Ou então: sair do imóvel para ir ao restaurante encontrar com a menininha rica, passando pelo entreposto de cavalos: a rua como meio. DELEUZE, G. O que dizem as crianças in Crítica e Clínica.
A infância parece ser uma fase natural de nossas vidas, mas nem sempre foi assim. Ariès em sua obra História Social da Criança e da Família nos mostra que na Idade Média (476-1453) a criança era considerada um adulto em miniatura. A inexperiência não era reconhecida e tudo isso implicava em uma série de relações desembocando em modos de viver bem diferentes de nossa época. As crianças trabalhavam em qualquer local, usavam roupas de adultos e não eram motivos de tanta preocupação e cuidados, pois se acreditava que eram criaturas cuja alma ainda não tinha se formado, daí que a própria morte de uma criança não era tão chocante. De modo geral, essa indiferença pelas particularidades da infância e da juventude perduraram até o século XIII. Importante observar que a maior parte das trocas afetivas e as relações efetuadas se dava fora do círculo familiar, a família ainda não era tão interiorizada quanto a que estamos acostumados.
No fim do século XVI e durante o século XVII as diferenças de desenvolvimento entre crianças, jovens e adultos começam a se tornar objetos de investigação, as famílias se tornam mais interiorizadas, surgem numerosas particularidades e preocupações quanto ao sexo, a idade, a vida íntima e privada, o aprendizado (surgem as primeiras escolas), etc.
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Como se vê, a infância foi se constituindo na história a partir de uma série de transformações. Hoje temos uma indústria gigantesca voltada à infância, produções e especificidades que não param de surgir. É possível encontrar panfletos pelas ruas sobre cursos de como ser mãe, cursos de autodefesa para bebês, cursos de prevenção e pedagogias inumeráveis direcionados para a formação de possíveis crianças musicais, artistas, esportistas, etc. No limite, a infância tem sido um empreendedorismo do futuro.
E com tudo isso será que podemos dizer que somos melhores ou piores que em outras épocas? Não nos cabe julgar o passado com o presente, mas um olhar mais atento vai perceber que muito do nosso olhar ainda vê a criança como um adulto em miniatura.
(…) perguntar para uma criança o que ela quer ser quando crescer é uma ofensa. Como se ela fosse receber um crachá de ‘ser’ só quando adulto. Isso é apagar o que ela já é¹. – Ailton Krenak (líder indígena)
A criança ainda é carregada do adulto que esperamos que ela seja. Sabemos que ela não é um adulto em miniatura em sentido literal, mas temos outros modos de vê-la como um adulto, e nem sempre percebemos isso. Assim como “descobrimos os índios”, descobrimos as crianças, isto é, a partir dos nossos próprios referenciais, no caso, os referenciais da vida adulta voltados para a produção capitalista.
Organizamos um conjunto de saberes e descobrimos a infância, mas ainda não conseguimos perceber a criança, esquecemos o que já fomos em meio a tantas preocupações e aborrecimentos de… adulto! É preciso um devir-criança capaz de encontrar meios de semiotização, de sensibilidades, de modos de perceber e de agir que possam se agenciar ou encontrar ressonâncias com o mundo infantil, mas como encontrar essas potências em nós se nascemos em um mundo que parece nos dizer a todo instante que ser criança é ruim e ser adulto é bom?
Assim como Foucault² mostrou que somos a civilização que mais inquiriu e perscrutou sobre a sexualidade e justamente essa profusão de discursos parece acabar produzindo um efeito de ocultar o nosso problema com o sexo, a profusão de discursos sobre a infância parece também produzir o efeito de ocultar a própria criança. Não negamos as potencialidades dos saberes sobre a infância, mas queremos perguntar o que as crianças podem nos dizer sobre os adultos que estamos nos tornando. Uma criança cintila, suas intensidades irradiam pelos seus modos de agir sobre o mundo, mas as formas adultas parecem perdurar escuridão e paralisia.
Matamos a criança em nós, soterramos o devir-criança em meio aos ternos, gravatas, bolsas e agendas lotadas, devotados à produção e ao acúmulo, preocupados demais em se defender das ameaças do mundo mal conseguimos enxergar o nosso entorno. Mais do que isso, estamos matando a própria infância da criança inserindo-a cada vez mais cedo em cursos para aprender habilidades que nós almejamos (línguas, instrumentos musicais, esportes, culinária, etc.). Entupimos a infância com televisores e filmes e celulares e imagens que valorizam o tempo inteiro os modos de ser e agir dos adultos até meia-idade e esperamos que com isso elas fiquem em silêncio e não nos incomodem.
Se Deleuze fala do devir-criança é para pensar um corpo intensivo. Com isso invocamos um modelo de corpo que resiste à mortificação, ou seja, seguimos por linhas de um devir-ativo para buscar alegrias. E o corpo infantil é um corpo que ainda não foi capturado, por assim dizer, um corpo que não se submete, docilmente como os adultos, ao esgotamento. Lá se vai a criança, compondo com os outros e fabricando suas ideias, compondo-se com pedrinhas, nuvens, bichos, flores, quintal, pneu, pessoas, lá se vai a criança compondo suas potências.
Muitas crianças não veem a hora de serem adultas, expressam suas vontades de ter um ofício e poderem comprar seus próprios bens, incorporam rapidamente o nosso modo adulto de ser pois são estimuladas o tempo inteiro a admirá-lo, bem como são depreciadas. A própria linguagem nos denuncia, chamar alguém de infantil é ofensa, até mesmo as crianças são repreendidas pelos seus pais, não seja infantil!, dizem.
Assim, paulatinamente, vamos matando o devir-criança e nos formatando com os modos dominantes de existir, nossos corpos vão perdendo a capacidade intensiva (ver Sobre um corpo intensivo) e ao longo de alguns anos estaremos empalhados, despotencializados, nossos movimentos e expressões engessados na forma adulta. O corpo vai sendo domesticado desde cedo, as intensidades vão se esvaindo, tão logo restará a forma média do homem como mão-de-obra à grande máquina produtiva que não pode – de forma alguma – parar!
O adulto médio, bem empregado, com família constituída, um carro para ir ao zoológico… Nossas crianças vivem cada vez menos e são lançadas rapidamente no mundo da sobrevivência, muitas já nascem nesse meio por conta de pobreza, maus tratos, trabalho, etc. Há uma grande diferença entre viver e sobreviver, basta olhar nos olhos de uma criança por alguns segundos e depois nos olhos de um adulto médio bem empregado, a diferença de fogo criador vai transbordar diante de nós.
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos
Ah!
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco
RAUL SEIXAS, Ouro de Tolo
Coerção, a base da educação
A educação e a pedagogia (durante a vida toda) são sustentadas e baseadas, em grande parte, por coerções. Achamos que ensinamos, mas o que fazemos é praticar punições, e chamamos isso de educar. Punimos as crianças quando elas entram na sala com os sapatos sujos, quando quebram um vaso, quando brigam na escola. Mas por que não queremos que sujem o tapete, que quebrem o vaso, que briguem na escola?
O professor puni o aluno com notas baixas, expõe as notas aos outros, diz que ele não se esforça. Mas o que está acontecendo que ele não consegue aprender? Ameaçamos as crianças caso não façam aquilo que gostaríamos que fizessem, se não comer todo o espinafre não irá ao parque. Mas por que queremos que ela coma espinafre?
Não faltarão respostas e justificativas, parece óbvio que pisar no tapete com sapatos sujos pode sujá-lo com barro, contaminá-lo, vai gerar dispêndios com limpeza, etc. É tão fácil dizer que alguém não se esforçou e por isso tirou zero na prova. E o espinafre que nem mesmo sabemos por que devemos comê-lo e queremos que a criança coma? Achamos óbvio demais que estamos ensinando as crianças com tudo isso, mas o que estamos fazendo é apenas emitindo ordens simplificadas de “pode” ou “não pode” que não ensinam a compreender. Estamos julgando-as com base nos nossos referenciais de mundo sem dar a elas as oportunidades de conhecer, compreender, aprender e, principalmente, relacionar-se com as possibilidades da vida. Reduzindo a educação às formas simplificadas das coerções nós perdemos a oportunidade de ampliar o mundo da criança afirmando outras possibilidades de existir mais satisfatórias, perdemos oportunidades de desenvolver inúmeras relações de afeto e aprendizado nos limitando apenas a punir. Vá até o vaso quebrado, queira saber por que a criança o quebrou, fale sobre o quanto você gosta do vaso inteiro, experimente relacionar o vaso quebrado com o brinquedo quebrado, procure saber, faça mais, junte-se a criança e junte os pedaços do vaso, faça um trabalho de colagem, … há tantas possibilidades de trajetos que ampliam a capacidade da criança interagir com o mundo e as coisas, mas tudo isso é reduzido em uma bronca que até pode evitar outros vasos quebrados, mas ensina, principalmente, o medo e a inibição.
Barganhamos até o amor no crime enorme do duplo vínculo, que são relações baseadas em contradições envolvendo afeto e violência (física ou simbólica). Por exemplo, quando a mãe diz que ama o filho, no entanto vive punindo-o.
A autoridade fala por nós, eu sou seu pai, eu sou mais velho, porque sim, porque não pode…- O que estamos ensinando, e muito bem porque nos tornamos adultos ou pais praticantes, de geração em geração, é amor ao poder, é a utilização da coerção, da ameaça e da punição como meios para se obter aquilo que desejamos e, principalmente, a praticar jogos emocionais de duplo vínculo. E nem vamos adentrar nas diferenças de sexo que formam o macho do amanhã.
Não é por acaso que temos uma facilidade enorme para julgar, e uma dificuldade enorme para buscar compreender. Tornamos-nos adultos cansados e apressados demais para se permitir imergir na temporalidade e nos meios semióticos da criança para buscar compreendê-la. Como queremos ensinar se não as queremos compreender?
A criança pergunta para a mãe como ela nasceu e a mãe se desespera, o silêncio esmaga a situação porque a mãe a entendeu a partir do referencial adulto, e como explicar o sexo para a criança? Mas ela não perguntou sobre sexo, se a escutássemos poderíamos perceber que muito provavelmente bastaria uma narrativa com os meios semióticos da criança para dizer que ela veio da barriga. Ela própria iria sinalizar que precisaria de algo mais se não estivesse satisfeita, e caberia a nós compreendê-la e ir navegando por esses fluxos. Mas fechamos as vias, batemos a porta na cara, fazemos de conta que não escutamos e não vemos e achamos que ela não vai nem perceber a nossa escusa, mas ela percebe e vai preencher esse silêncio esmagador com fantasmas que poderão atormentá-la por um bom tempo, perdemos outra grande oportunidade de efetuar afetos mais expansivos e potencializadores com a criança.
Não se trata de apontar culpados. Os pais também foram educados por processos semelhantes ou até piores, tanto que muitos sequer percebem o custo de vida que a coerção representa. Na minha época apanhava de vara, ajoelhava no milho e não morri por isso, dizem. Não morreram? Olhem-se no espelho da vida, os olhos de uma criança, para dar uma checada o quanto da própria vida não é mais desencanto que encanto. O quanto disso não se deve a uma educação que ensinou mais a temer o mundo que desenvolver e expandir relações para encontrar modos de vida mais alegradores?
Não há culpados, estamos todos enredados de alguma maneira em um mundo que desde quando nascemos se apresenta a nós como castrador. As coerções, punições e ameaças, contaminam todos os nossos trajetos possíveis, ao invés de expandir e potencializar perdemo-nos construindo defesas para escapar dos aspectos entristecedores. Na maioria das vezes incorporamos isso e a partir daí todas nossas relações são contaminadas com as marcas da culpa, do ressentimento, das acusações. Dirá Nietzsche que a consciência que desenvolvemos é uma má-consciência.
O custo para re-descobrir a vida e encontrar os meios de nos apropriarmos das intensidades que nos são castradas desde o berço é muito alto. Nem todos conseguem e todos os caminhos, por mais diferentes que sejam, exigem compreensão. Muitas vezes iremos escutar que os problemas do mundo se resumem a falta de educação em casa. Que a causa de crianças e jovens se envolverem com droga e criminalidade é falta de uma boa surra, assim como as notas baixas e até mesmo o vaso que se quebra. Iremos encontrar pessoas que creditarão a causa de seu sucesso às surras que levaram de seus pais. Mas é sempre a voz do ressentimento, da acusação, do julgamento e da ignorância que fala nesses termos, nunca da compreensão. São corpos fechados em um mundo fechado, as boas surras de fato o ensinaram a viver em cantos reduzidos com medo e temor do desconhecido, daí que acusam e julgam aquilo que desconhecem, estão separados da capacidade de compreender a complexidade das relações envolvidas nos nossos modos de viver, pensar, sentir e agir. Tornaram-se, por fim, um exemplo de adulto domesticado pelas forças tristes.
Procurei escrupulosamente não rir, não chorar, nem detestar as ações humanas, mas entendê-las. (…) – SPINOZA, B. Tratado Político.
O que as crianças podem nos ensinar?
Para se tornar um espírito livre Nietzsche nos apresenta, através de Zaratustra, três metamorfoses. Ele utiliza de três imagens para isso, o camelo que carrega o peso da verdade e dos valores nas costas, sujeito à obediência e sujeição; o leão que se rebela e luta contra todo o peso de sua época, mas ainda é uma luta sem propósito, uma rebeldia sem causa; por fim, a criança surge como a plena transformação do espírito. A criança carrega em si a potência do esquecimento, da inocência, ela não acusa nem julga a vida, pelo contrário, ela diz “Sim”. A criança não carrega o peso da verdade, da culpa, do ressentimento, da má-consciência, ela se agencia com as coisas do mundo ao seu redor e cria seus próprios mundos. Será que é realmente nós que precisamos ensiná-las a viver? Se for, precisamos urgentemente rever que ensino é esse.
Olhemos para nós. Vê lá, lá se vai um desconhecido, uma desconhecida que passou e sentimos que algo em nós se modificou, nem nos conhecemos, mas sentimos que uma certa alegria nos tomou. Gostaríamos de conhecê-la(o), chamar para sair, o que pensa, o que gosta, queremos falar e escutar coisas. E por que não vamos até a pessoa e dizemos o que sentimos? Por que nos é tão difícil dizer aquilo que sentimos e gostaríamos? Se não tivéssemos matados o devir-criança em nós talvez tivéssemos aqui a potência da espontaneidade da criança para agir. Tais situações acontecem conosco com frequência. Se nós achamos que a educação recebida de nossos pais – e da sociedade – foi bem-sucedida dever-nos-íamos facilmente expressar aquilo que sentimos e gostaríamos. Mas na maior parte das vezes nos perdemos em má-fé, jogos emocionais, adiamentos e todo tipo de trapaça com o outro e com nós mesmos. Olhemos para nós, a nossa facilidade com que julgamos e acusamos e a dificuldade que temos para compreender. A facilidade que temos para odiar e a dificuldade que temos para amar. Se acreditamos que punir, coagir e ameaçar, que a voz da autoridade e o poder são efetivos, então continuemos a olhar as crianças como adultos em miniaturas. Estaremos preparando pessoas inibidas, impotentes e sem tesão de existir tal como a maior parte dos adultos.
Talvez estejamos ou ainda nem começamos a ver, perceber, enfim, escutar a criança a partir de suas próprias narrativas.
Se as crianças conseguissem que seu protestos, ou simplesmente suas questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino. DELEUZE, G. Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze in FOUCAULT, M. Microfísica do poder.
Somos poucos intensos, perdemos a espontaneidade, perdemos a ritmicidade com o nosso tempo (ver Tempo não é dinheiro), perdemos a lentidão necessária para absorver e sentir o mundo e as coisas pulsar em nós, já nem vemos a joaninha passear pelas folhas que outrora nos era uma descoberta, temos uma dificuldade imensa para dizer o quanto amamos o outro e costumamos reagir mal diante de declarações desse tipo, perdemos, enfim, o encantamento. Deixemos que quem mais entende sobre essas coisas nos ensinem. A questão não é tanto o que temos a ensinar às crianças, mas também o que temos a aprender com as crianças.
1. Texto encontrado no site Catraquinha.
2.História da Sexualidade, Vol.1.
Arte: Alastair Magnaldo