Literatura

O erotismo da vida

a erotização da vida
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Nossas experiências mais intensivas são quase ou totalmente mudas. A maior parte do tempo estamos ocupados com um cotidiano atravessado por demandas utilitárias e morais – sub-vivemos, rebaixados da vida. A forma humana é marcada pela contenção de forças intensivas (ver Pensamento representativo, corpo, forças…), somos contornos mantidos por dada correlação de forças erigidas social e culturalmente que nos impedem um mergulho no caos, por assim dizer. Delimitamo-nos com outros inúmeros contornos através da consciência, temos a linguagem, um punhado de papeis sociais e etiquetamos o mundo, nós e todos os seres. A identidade nos protege e também impede que a vida se transborde em nós. Mas seria uma grande ilusão acreditar que nossos contornos são impermeáveis a esse fundo de forças caóticas. Há estados que querem se irromper em nós e extravasar nossas formas apolíneas, se não conseguimos algum momento de excesso o intensivo não consumido verte em formas de adoecimento.

Prosseguiremos sem adoecer. Dionísio entra em cena, ficamos inebriados pelo excesso, vida em excesso é vida erotizada. Conseguimos tocar e sermos tocados pela substância spinozana, se preferir, Deus, Natureza, o Infinito ou o universo cuja carne somos carne – eu gosto dessa expressão, entretanto o nome é o que menos importa quando pulsamos em frequências próximas ao do deus spinozano.

Divorciamo-nos da realidade material. Uma alegria excessiva nos invade, vai entrando por todos os buracos e poros, preenche o corpo e transborda pela boca. Queremos gritar essa alegria, doá-la para todos e contagiar tudo ao nosso redor, subverter a feiura do nosso mundo de drama e pessoalidade pela beleza do sagrado, queremos gritar esse instante vivido para que ele se perpetue pela eternidade, e nos damos conta de que ficamos mudos, estamos no meio do selvagem coração da vida, e mudos.

A vontade de despejar verbos e substantivos para anunciar essa alegria ao mundo se contrasta com um incomunicável que dói, dói não poder comunicar a beleza, mas dói alegremente, dói tão alegremente que uma lágrima costuma saltar e escorrer pelo rosto.Todos que amam a arte, no fundo, buscam por esses momentos onde a beleza faz chorar e todas as nossas armaduras que carregamos para nos proteger se dissolvem, sentimo-nos leves como dente-de-leão soprado pelo vento.

A grande descoberta que o homem pode realizar talvez seja esta: os momentos mais intensivos se vive na mais absoluta solidão.

Não se trata da solidão egocêntrica que demanda a atenção do outro, é uma solidão dos astros, das estrelas, dos planetas, das galáxias, dos confins nunca antes vistos do universo, dos sóis mais remotos, das luas mais geladas, das chuvas de meteoros, a solidão das eras, pré-histórica, paleolítica, mesolítica, neolítica, das geleiras, dos vulcões, do silêncio das grandes paredes rochosas do mundo, do desaparecimento dos dinossauros, do Austrolopithecus, dos Neandertais, dos gatos egípicios, das flores e dos insetos dos jardins da Babilônia, de Jesus Cristo escorrendo suas últimas palavras de sangue na cruz pedindo perdão pelos homens que não sabem o que fazem, de cada camponês e de cada rei já sepultados nessa terra, de Joana D´Arc cantando sobre o fogo, de Vincent Van Gogh com seu pincel cheio de tinta antes do suicídio, de Jacques Pelettier quando a guilhotina estava por conta da força gravitacional, dos peixes e anfíbios sem olhos que viveram no fundo das cavernas e dos oceanos e todas as criaturas cujos ecos se dissolveram no infinito e hoje vibram em nós. Nesses momentos tudo cintila, a morte não faz sentido, pois tudo é uma perpétua criação, vibração, transformação. Estamos banhados com uma espécie de baba cósmica¹ que torna tudo mais intensivo, contemplamos silenciosamente a beleza que se irradia em cada movimento de vida, nós mesmos como sendo parte perpetuada da transformação.

Algo em nós vai se passando. Às vezes nem nos damos conta. Partículas e mais partículas de matéria vão nos (des)arranjandos, elas podem vir de livros, músicas, ruas, pessoas, sonhos, dores, amores, mortes, civilizações, desamores, raios do sol, bichos, insônias, flores, fragmentos de olhos que já nos olharam e boca que já nos tocaram e abraços que já nos aqueceram perdidos na memória, o mundo roçando em nós e nós roçando no mundo até que algo se desestrutura e abre uma fenda nas geleiras do humano por onde a luz cósmica entra. Alguns arrebentaram a fenda e se perderam, há muitos por aí que foram se encontrar com deus e nunca mais retornaram, os chamam de loucos. Outros tantos se espalham pelos becos e vielas de uma existência cultivada com aquilo que mais amam esperando pelo próximo encontro com deus. Eles estão nas montanhas, nas cavernas, nas florestas, nas noites que parecem nunca ter fim, nas praças, nos lares entupidos de livros, nas ruas da cidade e do bairro enquanto tipos extravagantes, esquisitos ou como homens e mulheres comuns e de todos os tipos que vivem sendo tocados por um incomun. Um professor querendo encontrar um modo singular de ensinar. Um pensador seguindo os rastros de seus delírios conceituais. Um atleta abraçado com a dor enquanto corre. Desiludidos que acordam de madrugada para escrever versos que nunca serão lidos. Um cara solitário e uma garota solitária que esbarram os olhos e nunca mais tornarão a se encontrar. Diletantes de filosofia, bruxaria e alquimia. Uma senhora que luta pela vida de seus 120 cães e 40 gatos… todos esses tipos e tantos outros querem novamente entrar em contato com esse deus cósmico para que possam repor as forças a fim de continuar lutando e manter uma chama de vida acesa em meio a um mundo organizado com a matéria morta de vidas mastigadas diariamente pelas grandes máquinas globalizantes de adoração à Economia.

Como produzir uma rachadura em nós para que possamos se encontrar com esse deus infinito e perceber que dele fazemos parte assim como todas as criaturas belas e repugnantes? Nunca se sabe, mas é certo que durar nas boas relações é necessário para que um desabrochar possa acontecer, às vezes é lento, pode durar meses, anos, uma vida inteira, por vezes, de imediato, sem que esperávamos, outras tantas a partir de algum acontecimento de anos atrás e que já nem lembrávamos mas agora ele desaba sobre nós mudando cenários de nossas vidas.

Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor justifica a vida inteira. RUBEM ALVES. Do universo à jabuticaba.

Beethoven levou anos para produzir a Nona Sinfonia, custou-lhe a própria vida, a sua forma humana precisou se quebrar por inteira para que se seu espírito se derramasse sobre o mundo pela eternidade. Digamos que esse foi um encontro muito demorado e privilegiado com deus, esses homens são raros, raríssimos. Manoel de Barros, o poeta, precisava apenas se encontrar com folhas, passarinhos e pedrinhas, coisas que encontrava pelo seu caminho. Seus encontros foram narrados em milhares de versos durante a vida.

Levar lambidas cósmicas não é privilégio só dos grandes escritores, dos grandes artistas, dos grandes poetas. Eles são privilegiados na arte de nos aproximar com o incomunicável através das palavras, do pigmento ou do movimento. É por isso que por meio das grandes obras ou dos versos do poeta nós podemos romper as linhas humanas, ler grandes obras é ficar à espreita de rachaduras no nosso ser para que possamos devir através de fluxos que podem se imiscuir na substância spinozana. Às vezes uma frase ou um verso nos acerta com um golpe tão certeiro que faz cair nossas máscaras.

Nós também pulsamos na mesma frequência do coração selvagem da vida quando encontramos uma pessoa e no encontro dos nossos mundos se produz um mundo extraordinário, quando contemplamos e entramos em comunhão com um certo cenário da natureza, quando perdemos os olhos junto às estrelas, quando passamos a viver por aquilo que mais amamos, um monge isolado nas montanhas, uma mãe abandonada que vive pelo filho, um filósofo com seu pensamento, …. na transa com o mundo e os corpos encontramos nossos meios de erotizar a vida.

O encontro com o deus spinozano amplia por demais a nossa consciência, já não somos mais os mesmos pois um amor por todas as criaturas e formas de vida para além do bem e do mal surge em nós, ainda que possamos sentir ódio e raiva essa força será maior que qualquer desejo pelo poder. Compreendemos, por fim, que a vida não é algo pessoal, é verdade que ainda podemos lamentar, lamento, lamento por mim, por você, por todos nós, lamento pelas dores e pelas dificuldades, por todos os aspectos terríveis da existência, mas que são nossos lamentos diante da dádiva de fazer parte desse perpétuo espreguiçamento da matéria em suas múltiplas formas no tempo?

*

Lambidas cósmicas são a própria erotização da vida. Estar erotizado é estar sob os domínios do excesso. Nosso mundo talvez seja o menos erotizado de todos os tempos, somos sexualizados demais, é verdade. Sexo é contenção, erotismo é excesso, compreende, mas ultrapassa a sexualidade. Quem consegue se erotizar se a duração, esse desabrochar das coisas em nós necessário para encontrar vibrações que vibrem conosco a fim de aumentar a intensidade, é constantemente interrompida? Quem consegue se erotizar ao mesmo tempo em que se tira selfie durante uma transa com o mar?

A sexualidade e a morte não passam de agudos momentos de uma festa que a natureza celebra com a multiplicidade inesgotável dos seres, qualquer deles com um sentido de gasto perdulário ilimitado que a natureza faz ao encontro do desejo de perdurar, que também é próprio de todos os seres. BATAILLE, G. O Erotismo


1. Termo com licença poética de Josiane Souza.

Imagem: James E. Eads

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Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.