Se tivéssemos a mesma capacidade de se apaixonar uns pelos outros assim como nos apaixonamos pelo poder, teríamos que considerar as orgias que se espalhariam pelas cidades.
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Não se apaixone pelo poder, disse Foucault (ver Introdução à vida não fascista) lançando mais longe a flecha de Reich que não se deixou iludir pelo modo cristão do marxismo ver no proletariado a bondade necessária para acabar com a dominação. Mas os rastros dessa flecha vêm de muito antes. Já no século XVI Étienne de La Boétie nos deixou uma obra cujo título deveria nos envergonhar, Discurso da Servidão Voluntária. Spinoza, no século XVII, seguindo por outros pensamentos e com muito mais sofisticação, também denunciou a servidão dos homens. Estamos falando de séculos XVI e XVII quando no século XXI continuamos praticando servidão voluntária, um termo que Foucault certamente desconsideraria e diria que ninguém quer ser escravo… é verdade, mas a questão é mais complexa que esse aparente absurdo. Sonoramente a lógica do bode expiatório é espalhada e costumamos, ainda, dicotomizar em direita e esquerda enquanto o capital rebaixa a vida em escala planetária.
Nos rastros de Foucault, podemos perceber, a partir da sua genealogia do poder, como ao longo dos séculos as funcionalidades e os objetivos dos poderes se modificaram. Se em dada época o poder queria deixar morrer e foi possível o esquartejamento de corpos em praça pública, hoje, mais do que nunca, o poder quer fazer viver.
Quando falamos de poder através de Foucault, dentre as várias implicações, é importante assinalar que não estamos falando somente dos aparelhos do Estado e suas formações ideológicas. O poder opera através de relações flutuantes, não sendo localizável isoladamente nas instituições nem em ninguém. Não há poder em si¹, há relações de poder sendo produzidas através das transformações políticas, sociais e econômicas. No limite, produzimos e somos produzidos por relações de poder a partir dos modos como nos relacionamos com a vida. Nesse sentido, não há o que se falar de opressão de um lado e vítima de outro porque sempre há relações de cumplicidade envolvidas (ver O desejo deseja sua própria repressão). Assinala-se aqui a necessidade de pensar a produção do desejo no capitalismo que está diretamente relacionada com a produção subjetiva.
Políticos corruptos circulam pela política todos os anos, e o que somos? Que sociedade é a nossa? Será que não trapaceamos até mesmo no amor? Devemos nos perguntar se o desejo em nós também não quer o poder, não é sintomático demais que continuamos elegendo os que estão ligados aos grandes polos da mídia e do capital? Ora, a partir de Foucault a gente quer ter a ousadia de dizer que a política não pode ser pensada como algo externo a nós, pois ela é uma extensão de nós, e se ela é uma extensão de nós temos que olhar a corrupção, o fascismo e a opressão que estão presentes em nossas relações e o Estado interiorizado em nós (ver Para além de uma política paranoica).
Não foram monstros que criaram as câmaras de gás, o fascismo vai se alimentando dos desejos de homens e mulheres que também se declaram do bem – o “mal” não é aparente -, clamam por justiça a partir de pensamentos dicotomizados movidos pelo ódio e sentimento de vingança, e nada mais facilitador para as formações fascistas que o desespero, a desilusão e o medo dos homens. E nunca antes houve uma produção ininterrupta do medo como em nossa época. Redes sociais, televisores, jornais e revistas, filas de supermercado e de banco, vizinhos… o medo circula em profusão nos melancolizando e entristecendo, tornando-nos altamente vulneráveis ao sentimento fascista.
O poder não quer ser visto como tirano e opressor, pelo contrário, ele quer ser aceito como benevolente. Em nosso tempo as normatividades e as operações de controle se dão muito mais por sedução do que imposição. O poder quer prolongar a vida e fazer viver porque ele precisa se servir dos corpos, dos afetos e da linguagem como meios de se perpetuar. E a principal maneira do poder se tornar desejado em nós é nos entristecendo. Daí que dizemos: todo poder é impotente, por conseguinte, todo homem apaixonado pelo poder é um impotente que não consegue se afirmar de outra maneira e precisa de algo que o afirme.
(…) o tirano necessita de almas despedaçadas, como as almas despedaçadas necessitam de um tirano. DELEUZE, G. Espinosa – Filosofia Prática
Para que manter torres de vigias, exércitos e carrascos se já carregamos no bolso aparelhos de controle extremamente eficazes e sofisticados? Ao cabo de cerca de algumas semanas o uso de cartões de crédito e celulares são capazes de fornecer dados o suficiente para alimentar bancos de dados que podem relacionar-se entre si de maneira quase que infinita e dizer sobre nossos modos de pensar, comer, vestir, nossos hábitos e preferências até mesmo de amar. Sorria, você é o próprio vigia, vigiamos uns aos outros.
Monarquias inteiras podiam ser derrubadas, bastava derrubar um único indivíduo, o rei. Hoje a cabeça do rei não está localizável em lugar algum e está em todos os lugares ao mesmo tempo. O capital substitui um presidente quando ele bem entende, porque o político costuma ser um coadjuvante em uma teia complexa de relações podres que se mantêm independente de quem seja. Pode-se desestabilizar o establishment de nações sem usar uma única bomba, para isso o capital opera infiltrando-se em nossos modos de vida e captura os investimentos desejantes para direcioná-los àquilo que se quer atingir, e o modo como ele faz isso é inoculando a falta no desejo para tornar a vida rebaixada e entristecida, só aí o poder pode entrar com suas ofertas de salvação.
Há quanto tempo não caímos na mesma pegadinha, de quatro em quatro anos, trocando os personagens da dominação? Se a gente não muda a maneira de nos afetar e nos relacionar, se não cuidamos de nós mesmos, repetimos a mesma servidão porque a política não é uma coisa à parte daquilo que estamos fazendo de nossas vida. É claro que há opressão na sociedade, é claro que o capital, a mídia dominante, os bancos, o Estado e seus aparelhos detêm forças poderosas, mas o que se pede é que nos perguntemos, quem fornece esse poder todo já que o poder em si não é algo que se tem mas que precisa ser exercido? Acusar, julgar e eleger bodes expiatórios é muito fácil, difícil é se colocar na relação porque aí começamos a perceber as nossas pequenas e grandes cumplicidades com o poder.
A opressão se sofisticou, e muito, e nós, parece que continuamos voluntariosos da servidão porque depositamos a vida no poder e não na potência. Daria para escrever páginas e mais páginas sobre modos de como vamos estabelecendo relações de cumplicidade com o poder e produzindo nossa própria servidão. Como explicar que, diariamente pelo mundo afora, multidões sentam em seus sofás e emprestam seus corpos, seus afetos e suas almas para assistirem pessoas sendo filmadas enquanto tagarelam, brigam, comem e excretam durante 24h vividas em uma grande casa? O que esses telespectadores, afinal, estão fazendo? Tudo aí está perpassado por relações de poder. São modos de viver, se relacionar e se afetar que estão sendo exibidos e direcionados para interesses do capital que em última instância é sempre o lucro. Uma hora ou outra esses interesses se conectam com a falta do indivíduo e ele passa a fazer investimentos desejantes cúmplices com os modos dominantes de viver que veem nas diferenças o inimigo a ser destruído.
Podemos nos perguntar também quem são os senhores da mídia, quem são os políticos, quem são as grandes corporações e instituições, quem são todos os tipos de produtores de dominação a serviço do rebaixamento e da humilhação da vida sem nós e descobriríamos que também temos nossas cumplicidades com tudo isso. Se perguntarmos a Étienne de La Boétie quem são os opressores sem os seus cúmplices ele nos dirá que não são nada, pois nós somos a lenha que alimentamos esse fogo destruidor de vidas.
Homens saltaram de prédios no grande crash da bolsa de Nova Iorque, muitos se enlouquecem e se matam quando do dia para noite perdem todas as suas riquezas, o que eles perdem que o levam a ações tão drásticas é qualquer possibilidade de viver, pois a um homem apaixonado pelo poder já nada lhe resta quando sem o poder. Não tem mais nome, não tem mais voz, não tem mais rosto, não tem mais força para sustentar o próprio corpo porque tudo o que tinha era sustentando de fora. O amor ao poder nos vampirizava e suga toda a potência da vida (o corpo, os afetos, os pensamentos, o tempo, as emoções, a linguagem, etc.) como meio de se perpetuar. O poder separa o homem da potência de vida de tal modo que, quando lhe retirado, a vida já está tão no buraco que fica difícil para o desejo retomar suas intensidades e produzir seus próprios meios de viver. O filme Blue Jasmine de Woody Allen nos mostra uma mulher de meia-idade que ao ser abandonada por um rico marido se vê completamente desorientada na vida, ela tenta retomar a produção desejante e conta com a ajuda da irmã, mas já é tarde demais, já não há vida sem o poder que lhe garantia reconhecimento e amor, ainda que o fossem meras fachadas para o olhar do outro.
Em nosso tempo, produzir consumidores é uma das melhores maneiras de manter as pessoas apaixonadas pelo poder. Toda produção capitalista, mais do que seu valor de uso, e aqui seguimos Marx, está envolta em seus fetiches que, no limite, anunciam possibilidades de usar poderes. As mercadorias se ligam com o desejo de se sentir amado e reconhecido, basta ligar uma quinquilharia qualquer com imagens de uma vida que detém o olhar do outro e relacioná-las umas às outras para manter uma fidelização de fracos sedentos para fazer uso de pequenos poderes (ver O publicitário como fabricante de desejos).
Diante disso, queremos nos perguntar o quanto de nós não está investindo no poder e não na potência, no lucro e não na vida? Quem somos sem Prada, Hugo Boss, Victor Hugo, Mercedes, Ferrari, trufas e caviar? Quem somos em Paris, Londres e Miami sem selfie? Quem somos nós diante do porteiro do prédio e diante do juiz? Quem somos nós dentro e fora das massas? Falamos e agimos em nome próprio?
O poder seduz, chega prometendo gerir toda a nossa vida com confortos e benefícios, mas o que ele quer mesmo é roubar tudo o que temos, a potência da vida. Imaginamos que o poder nos dá algo porque somos seduzidos pela sua lógica benevolente que fala em nome do bem. Se aceitamos ser geridos pelo poder nós vamos abdicando da nossa potência de agir, da nossa energia, do nosso corpo, dos nossos afetos e da nossa capacidade de pensar, de modo que a produção de intensidade no desejo fica paralisada. E é desse buraco, somente depois de rebaixados da vida, é que o poder pode agir em nós.
O poder não nos captura porque ele é uma força poderosa da qual estamos irremediavelmente condenados, o poder só funciona à medida que vamos celebrando tácitos acordos no nosso dia a dia implicados no poder e não na potência.
É no uso que fazemos dos nosso afetos, da nossa linguagem, do nosso corpo, do nosso pensamento que podemos encontrar sérias cumplicidades com o poder. A maneira como vamos criando nossos modos de viver e se relacionar pode estar mais comprometida com o poder do que com a vida. É no silêncio dos dias e das noites que vamos cavando a própria cova, quando então rebaixados, o poder aparece calorosamente e nos convida para celebrar uma vida na falta.
Vamos fazer algumas atualizações. O poder não quer castigar nem punir, ele tem ofertas e benefícios para todos os tipos de vida, inclusive minorias. O poder não é próprio de tiranos e carrascos, na democracia são homens de bem que morrem de amores pelo poder. E há que se diferenciar potência de poder para não sermos facilmente seduzidos, e ninguém está a salvo das seduções do poder, nem mesmo certos movimentos minoritários que falam em empoderamento (já somos estimulados ao poder desde crianças!)… não acreditamos em resistência que quer se empoderar, falamos em potencializar. Potencializados não mendigamos esmolas ao poder.
Finalmente, vamos falar de potência para diferenciá-la do poder. Trazemos a potência a partir de Spinoza. Deus ou a Natureza tem uma potência absoluta de se expressar. Toda a vida é produção dessa potência absoluta. Ora, nós somos partes dessa potência absoluta, não somos absolutos mas também somos produção nos limites dos atributos que conhecemos, corpo e mente. E nós não sabemos do que podemos. Não temos que pedir licença para viver, a vida já é plena e somos inseparáveis de uma potência de agir. Se nos tornamos impotentes é porque delegamos nossa vida ao poder, de outro modo nós não temos necessidade de sermos geridos, pelo contrário, temos necessidade de criar. Já o poder é incapaz de estar à altura dessa potência de agir, daí que ele precisa destruir, degradar, humilhar, entristecer, rebaixar a vida e nos desqualificar de inúmeros modos para que ele possa se exercer através de nós.
Resistir ao poder
Sabendo que o poder é difuso, cheio de trapaças, seduções e age por uma intrincada e complexa rede de relações, estabelecemos uma regra de combate: não queremos atacar o poder, mas a impotência em nós. É a vida tornada sobrevivente e entristecida, destituída das intensidades e zumbificada nas filas do consumo que precisa ser cuidada. Dizemos então que a alegria é a força mais revolucionária que existe (ver Sobre a alegria).
Se o poder é difuso, ele não admite vácuo, ele penetra todos os espaços vitais que deixamos de cuidar e nos preenche com falta e culpa. Se não nos cuidamos, o poder cuida. Ele fala, pensa e age por nós. Práticas de resistência diárias são intrínsecas a toda vida que se quer livre, é a forma básica de não deixar a poeira fascista se acumular em nós, daí que é preciso criá-las, descobrir dispositivos de combate através de uma seleção de encontros que possam aumentar nossa potência de agir.
Se quisermos outros modos de fazer política temos que começar urgentemente a rever o que estamos fazendo de nossas vidas e passar a cuidar de nós mesmos, do uso que fazemos dos nossos afetos, dos nossos pensamentos, das nossas relações, dos investimentos desejantes em nossos modos de viver.
Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os tomadores de almas, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos. A longa lamentação universal sobre a vida: a falta-de-ser que é a vida… Por mais que se diga “dancemos”, não se fica alegre. Por mais que se diga “que infelicidade a morte”, teria sido preciso viver para ter alguma coisa a perder. Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio. Tudo é caso de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos
1. Por facilitação, usaremos a palavra poder em vários momentos, mas tenha em mente que estamos falando de relações de poder.