Outrora eu pensava que ser humano era o mais alto objetivo que um homem podia ter, mas vejo agora que isso se destinava a destruir-me. Hoje sinto orgulho em dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com crenças e princípios. (…) Nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade – eu pertenço à terra! – HENRY MILLER, Trópico de Câncer
É isto um homem? – perguntou-se Primo Levi durante sua vivência como prisioneiro em Auschwitz, pergunta essa que deu título a uma obra para envergonhar os homens de serem homens, obra recomendadíssima. E sim, eram homens, é justamente desse espanto que o título nasce. Não foram animais nem monstros que possibilitaram as câmaras de gás, câmaras que hoje são itinerantes e difusas, câmaras contra mulheres, crianças, adolescentes, homossexuais, negros, povos indígenas, enfim, câmaras contra a diferença frente a uma subjetividade neoliberal hegemônica. Foram e são seres humanos que promoveram e promovem barbáries – palavra esta que já é sugestiva, vem de bárbaros, os outros, os diferentes de nós nascidos sob céu cristão.
Se fôssemos extintos amanhã o sol continuará a aquecer os animais e as plantas, os animais e as plantas continuarão embelezando esse mundo, um cervo continuará comendo a relva fresca ao amanhecer, seus olhos continuarão sendo dóceis e grandes e suas bochechas de pelúcia mastigarão graciosamente. Um leão continuará aparecendo às escondidas e abocanhará o frágil pescocinho do cervo para rasgá-lo como papel, irá ter sangue, irá ter gritos, irá ter dor, irá ter luta, mas nada, absolutamente nada dessa “diabólica natureza”, como chamava Baudelaire com seus requintes melancólicos, irá se equiparar aos horrores que nós, humanos, já protagonizamos ao longo da história. Nós, seres humanos dotados de inteligência e verbo.
Aprendemos com as luzes que nos inventaram, com o humanismo que nos ungiu, com o berço cristão que nos acolheu que atribuir o humano a algo é por si só um qualificador. Espantamo-nos diante das barbáries – Que mundo é esse, onde está nossa humanidade! – berramos! Está aqui, sempre estivera aqui, nós somos os próprios monstros, nós, os humanos, demasiadamente humanos! A questão é outra. Afinal, o que é essa forma inventada chamada ser humano? Que é essa forma inventada chamada civilização que opomos como bem ao mal dos bárbaros, do outro, do diferente de nós? Ainda somos humanos? E deveríamos lutar pelo humano? Não é ele mesmo o próprio monstro do qual deveríamos lutar para desfazer, desfazer o humano em nós e ir em busca do inumano?
Não será a própria forma homem, a forma humana a ser superada? (ver O homem como forma a ser superada) “O homem é apenas um rosto de areia na beira do mar, passada a primeira onda, nada restará” disse Foucault. Um além-do-homem ainda estaria por nascer, disse Nietzsche. Certo é que não se trata apenas de uma questão de nomenclatura, trata-se de nos atentarmos um pouco mais às configurações de forças que foram tecendo o humano como uma espécie de sagrado ao longo da história do pensamento. E por assim dizer, é preciso dizer que somos nós seres humanos, somos nós formas humanas, nós homens – e não monstros, e não animais! – que protagonizamos as piores barbáries, de séculos passados e de dias de hoje, e talvez sejam justamente aqueles que conseguem desfazer suas formas humanas que promoveram e promovem, também, as forças do amor e da beleza.
(…) Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras. (…) – CLARICE LISPECTOR, A paixão segundo G.H