Nesse sentido nenhum desejo está sozinho, ninguém deseja um objeto, ninguém deseja a mulher amada, deseja-se a mulher amada e seu corpo belo e seu sorriso e seu olhar doce e sua boca que parece sorrir em silêncio e seu vestido que evidencia a delicadeza de seus traços e a possibilidade de beijá-la e abraçá-la e sentir a maciez e ternura de sua pele e…e…e… – o desejo é movimento, conexões em toda parte, produção incessante.
O inconsciente, nesse sentido, é uma fábrica – e não um teatro representativo com papai-mamãe – que não para de produzir, produção desenfreada onde o desejo só se cria, só se expande, cresce, transborda e toda essa criação acontece no mundo tal como se apresenta a nós. Sem considerar as possibilidades do homem criar outros mundos e vidas, tomemos como ponto de partida o mundo real, e como só há ele não há negatividade na natureza, como o desejo sempre parte do real não há ponto negativo, daí nada faltar ao desejo e todo desejo é produção de realidade.
Ora, para admitir a falta do desejo é necessário colocar algo antes da vida, é necessário um ideal, um transcendente, um universal ou lei castradora qualquer colocada pelo homem, contudo, quando fazemos isso a vida já começa como sendo uma vida julgada a partir do critério que foi colocado antes dela mesma. Essa é uma prática muito conhecida na figura do padre, mas não somente dele, a ciência também tem seus padres.
Máquina-família, máquina-escola, máquina-educação, máquina-religiosa, máquina-ciência, máquina-médica, máquina-psicológica, máquina-pedagogia… Nossas máquinas desejantes são organizadas pela máquina social. A máquina social opera a partir de cortes e fluxos binários (ou isso ou aquilo), lógica de sentido, lógica de ideias, lógica da linguagem, etc. O religioso diz que o mundo foi criado por deus e que somos filhos dele, o médico diz que o corpo humano é formado por organismos que formam sistemas, o campo social diz que você deve obter um emprego de alto nível, consumir e se relacionar, etc. – E assim tudo falta, não sobra nada a não ser lamúria ao homem atravessado pela falta, lamúria disfarçada em desejo de ser amado e de ser aceito para poder existir!
Não se trata de negar toda essa produção já existente no mundo, mas perceber que há algo em comum em todas elas, a grande máquina social está o tempo todo esmagando o desejo a partir de referenciais externos, oferecendo-nos modos de vida supostamente mais qualificados e melhores do que os nossos, e o meio mais eficaz de fazer isso é operando a falta no desejo. Todos os axiomas do capitalismo operam segundo a lógica da falta. Ora, separados da potência criadora do desejo enquanto imanente à vida, resta-nos desejar algo que supostamente faltaria para a vida, e então ficamos em espera e dependência de algo externo a nós.
Quando ficamos impedidos de produzir o desejo não pode expandir, o que não quer dizer que não desejamos, pelo contrário, não paramos de desejar, desejamos incessantemente, no entanto, o desejo é rebatido em alguma negativa da máquina social caso ele não esteja “qualificado” por ela, e desse modo ele se volta para dentro de nós abrindo o buraco da falta – buracos que passamos a chamar de angústia, vergonha, culpa, impotência, etc. Se o desejo em nós opera enquanto uma falta sua função não é mais a de nos fazer criar e possibilitar um aumento da potência de existir como nos ensina Spinoza. A falta nos faz existir sempre em uma vida incompleta, à espera de algo – ponto central.
A máquina social é criada e mantida pelas formas dominantes de vida, portanto, pelo poder. Não entendamos aqui o poder apenas enquanto uma estrutura – ou política ou sob a legalidade jurídica -, pelo contrário, entendamos também, principalmente, o poder como presente em toda as relações e operando de maneira muito sutis, silenciosas, criativas (o poder também cria) e agindo em nome do bem! Diga-se: o poder quase sempre age sob a justificativa de que é para o nosso bem, e temos sido cúmplices em delegar para muitos outros o que seria o melhor para a nossa vida, e acabamos por sufocar aquilo que seria a nossa bússola existencial por excelência, os nossos próprios afetos! Não há ninguém além de nós mesmos capaz de dizer o que seria melhor para si.
Fuganti em uma de suas aulas nos dá uma definição belíssima de como a falta opera em nossos desejos. Em um primeiro momento o poder é aquele que dá um tapa e esconde a mão. No segundo momento ele lhe estende a mão, uma mão que se passa como inocente mas com muitas intenções – a intenção do bem, a intenção do amor, a intenção da caridade, a intenção que quer sempre algo em troca. Assim é a dupla captura do desejo. Se na primeira captura ele é lançado num buraco, na segunda captura ele precisa sair do buraco, e para sair do buraco uma mão (a mão do poder) é estendida para oferecer uma reconciliação. Essa reconciliação passa por uma desqualificação da nossa produção desejante em detrimento da produção desejante dominante.
Ora, há uma sedução do poder. Na medida em que ele oferece a reconciliação ele oferece uma série de “vantagens”, podemos sintetizá-las em uma única: ser bem aceito por todos! Quando separados da potência criadora da vida ficamos impotentes e então não conseguimos sustentar, bancar, implicar com a nossa produção desejante; cedemos ao poder e passamos a ficar dependentes de suas estruturas que operam a partir da falta. Por assim dizer, ficamos a pedir licença para poder existir.
Tendemos a considerar que o desejo deve ser barrado porque representa o que há de perigoso e sujo em nós. Essa visão tem fortes bases no pensamento platônico-cristão, a maneira dominante de pensar no ocidente. É por isso que Nietzsche dirá que a ciência é herdeira de uma estrutura religiosa do pensamento da qual ainda não se libertou. É o padre que nos faz acreditar que a natureza do desejo é má, mas o desejo está para além do bem e do mal. Isso não quer dizer que as maneiras que expressamos nosso desejo não tenham consequências. Nessa linha de pensamento tendemos não conseguir perceber as implicações que o desejo enquanto falta tem para as nossas vidas. Implicações sutis, silenciosas, em pequenas doses de fascismos que operam no nosso dia-a-dia.
Pequenos modos de perceber e sentir as coisas, um tique na hora de conversar, uma palavra adorável que se usa para significar o que não corresponde à sua significância, as experimentações incomuns dos prazeres, gestos e olhares que soem de uma maneira estranha à lógica significante… enfim, os inúmeros tons com que se compõem os modos de vidas, basta com que eles destoem dos modos de vida dominante para que sejam passíveis às reações desqualificadoras.
Quando o indivíduo acredita lhe faltar algo da qual deve possuir para que então possa sanar a incompletude e supor, a partir daí, que os acontecimentos lhe serão mais favoráveis ele não consegue bancar sua produção desejante e vai ficando cada vez mais dócil às forças reativas da máquina social, aí entram as ofertas para tapar nossos buracos, é aí também que nos tornamos financiados e em débito constante com a vida.
Por outro lado, quando compreendemos que a falta foi implantada na nossa formação subjetiva e serve muito mais aos poderes do que à vida, e compreendemos que o desejo enquanto produção é imanente à vida, quando estamos cientes da nossa potência e das maneiras de funcionamento das “polícias-do-desejo”, não nos permitimos ser capturados pois as forças reativas perdem em boa parte os seus efeitos capazes de nos colocar em dependência e impotência que nos levariam a segurar na mão caridosa e cheia de boas intenções oferecida pelos modos dominantes.
Lembremos que quando crianças é bem possível que talvez já tenhamos nos sentido infelizes porque gostaríamos de ter alguma roupa ou brinquedo que vimos em um comercial de TV apresentado pelo nosso apresentador favorito. Esse mesmo “objeto do desejo” dificilmente conseguiria nos despotencializar hoje enquanto adultos. Ele não nos captura, independe a nós possui-lo para que possamos existir em toda sua completude. É aí que nos encontramos quando estamos cientes da própria potência criadora da vida, temos força o suficiente para não nos permitirmos ser capturados pelas forças reativas que irão querer desqualificar nossos desejos para que tenhamos que ser aceitos. No entanto, as crianças se tornam adultas, mas continuam esburacados pela falta! Daí haver toda uma série de outros objetos que fazem os adultos se sentir infelizes por não possui-los ou a demandar do outro um qualificador afetivo, antes, para se sentir capaz de existir.
ALGUMA CONCLUSÃO
Falarmos em desejo enquanto potência criadora da vida é romper com uma tradição filosófica e ideológica que vigora há milênios constituindo nossa subjetividade. Tomamos o desejo enquanto falta como se fosse algo natural, e o fato da ciência ser quase caduca de filosofia nos dias de hoje, faz com que quase nem desconfiemos da maneira como vamos nos constituindo.
Perceber a maneira como vamos nos constituindo, o que implica também a maneira como vai se constituindo os campos dos saberes, as relações de poder e saber e como tudo isso vai investindo nossos corpos, modos de vida e de pensar, exige uma liberdade do pensamento em navegar por outros territórios quase sempre excluídos do pensamento dominante, filósofos como Nietzsche, Spinoza, Deleuze, só para constar alguns. Ora, da pré-escola à formação acadêmica, não estamos acostumados a reproduzir o pensamento dominante?
Trata-se mais de um convite: desconfiemo-nos de todos os gurus, profetas, especialistas, quem quer que seja que se apresente como prescritor de modos de vida que querem passar como mais qualificados e consequentemente desqualificar os nossos modos de vidas e as singularidades que nos compõem, não por pura e simples negação, não por pura e simples rebeldia, mas por uma questão de vida e de morte – morte em vida quando passamos uma vida inteira na dependência de uma salvação!
A vida não admite uma natureza que seja antes dela mesma, quer dizer, naturezas do negativo que servem para avaliá-la antes da própria experimentação. Não é fácil, as forças reativas são muitas, a máquina social é terrível e está por toda a parte operando de muitas maneiras. Há muitos tipos de padres querendo capturar o desejo, tornando-nos faltantes por conta de seus vários ideais que colocam na vida como condição de completude, no entanto, saibamos que há sempre uma cumplicidade de nós mesmos, de certo modo, permitimo-nos despotencializar pela falta – é o que há de exaltante nisso tudo quando olhamos ao nosso redor e sentimos o poder nos causando vertigens se ameaçamos não ceder às suas tentações -, é o que há de mais exaltante, saber que é possível afirmar uma estética da existência que seja mais potencializadora. “Não se apaixone pelo poder” dizia Foucault, o poder nada entende das belezas e das alegrias singulares com que podemos compor. Por uma vida de mais potência, por um basta à falta!
Imagem: Composição V, W. Kandinsky, 1911.