Por que resistir não é para muitos?
Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. Diálogos. DELEUZE, G; PARNET, C.
Uma jovem é estuprada por mais de trinta homens, filmada e exposta na internet, um político em rede pública faz homenagem a um torturador e estuprador, esse mesmo político em tantas vezes já se colocou como estuprador, um ministro da educação recebe um também estuprador confesso em rede nacional, a polícia mata uma criança de dez anos dizendo que é legítima defesa pelo mesmo estar armado, todo nosso cenário político é um reality show de cinismo transmitido por uma impressa, também, completamente cínica… como é possível o mundo continuar produzindo? Como é possível que as montadoras de automóveis não parem e os shoppings abram suas portas como se nada tivesse acontecido e nós continuemos a ir ao trabalho? Como é possível continuar depois de forças tão apequenadoras insultar a vida?
Deveríamos recusar o culto ao capital e ficar sentindo a vergonha entrar pela boca do estômago. Deveríamos parar tudo para repensar o que está acontecendo conosco, mas o mundo continua com sua ecumênica marcha ao acúmulo e o mundo continuará assim como continuou depois das fogueiras em praça pública e das guerras e das câmaras de gás porque não temos intensidade o suficiente para incendiar toda essa morte a serviço dos bancos e dos grandes capitais que movimentam lucros aviltantes para engordar vidas de um seleto grupo, modos de viver estes muitas vezes desejados por nós mesmos – o fascismo é desejado!
Os efeitos de um corpo exposto a forças entristecedoras são variados. Palavras parecem sumir, nossa capacidade de pensar é sufocada, as gentilezas dão lugar a apatia, falta a sensibilidade para reconhecer a importância de uma pessoa querida e agradecê-la por isso, até aqui parece tudo bem, são efeitos sutis e contornáveis quando temos conhecimento dos afetos agindo em nós, por assim dizer. Mas os afetos negativos também podem se cristalizar em algo maior, processos desejantes neuróticos e paranoicos promovendo tipos de vida entrincheirados no ressentimento, corpos dominados por paixões passivas como o medo e o ódio prontos a dar vazões através de violência física e simbólica contra tudo aquilo que lhes pareçam diferente, portanto, um inimigo em potencial para se eleger como causa da própria impotência.
Posso sentir a vergonha de ser humano, de ser homem, posso sentir o nojo do homem com toda a brutalidade, a queda do pensamento, as palavras sumindo, as têmporas empalidecendo, o corpo que precisa se deitar para aliviar a gravidade que parece esmagar o espírito. O desejo de apertar um botão e explodir o mundo… isso é um corpo atingido pela tristeza que ameaça sitiar toda a sua expressividade. Uma pequena diferenciação: a vergonha diante da violência contra a vida pode ser um afeto capaz de desfazer, quem sabe, nossas imbecilidades e criar modos de vida mais potentes. Mas o nojo… o nojo, dirá Nietzsche, é a entrada para um buraco negro, um sintoma já avançado do niilismo, quando começamos a sentir nojo do homem é bom ligar o sinal de alerta e sair procurando belezas por aí antes que o veneno se alastre.
Olhemos ao redor. A nossa história patriarcal, o céu cristão sobre nossas cabeças, as guerras em nome do acúmulo de riquezas, o eurocentrismo dizimando mundos inteiros em nome de verdades radicais, o antropomorfismo exterminando espécies a qualquer custo, o capital valorado como maior que a vida, a nossa educação comportamental, desde crianças, ensinando-nos à obediência e à reprodução, o fogo criador da nossa juventude sendo pouco a pouco apagado pela produção adulta da vida em tempos cada vez mais encurtados, tudo ao nosso redor aponta para a produção de corpos incapazes de lidar com as diferenças, incapazes de reconhecer as forças criadoras da beleza, do amor e da alegria, pelo contrário, tudo ao nosso redor está impregnado de forças entristecedoras.
Na nossa constituição subjetiva a má consciência, a culpa e o ressentimento são sintomatologias que vão sendo internalizadas como próprios tipos de vida. É fácil demais se entristecer em meio a todas essas condições, já produzir uma vida ativa é muito difícil. Uma vida ativa é algo raro, não tomemos isso como um insulto, mas com a lucidez de um pensamento que procura compreender as forças que nos constituem para nos forçar a encontrar aquilo que nos intensifica e liberar as forças da vida.
Em ambientes assim somos estimulados desde crianças à impotência de criar outras vias que favoreçam às intensidades desejantes, e quão difícil não é resistir quando o desejo é separado de sua intensidade por uma pedagogia de austeridade e dominação em tempo integral? Resistir é para poucos, muitos optam por agarrar as “supostas” certezas oferecidas pelas forças autoritárias e resgatar seus pequenos regalos, doses diárias de algum prazerzinho e até a possibilidade de usar algum poderzinho, e o sonho, quem sabe, de se dar bem na vida, afinal, tudo aponta para que o sucesso só dependa de você!
Acreditamos na resistência como uma prática, uma ética e uma postura ativa capaz de devolver a intensidade ao desejo porque desacreditamos no poder como uma coerção que vem de fora e nada nos resta fazer. Não existe poder que se imponha somente por coerção, a coerção pode até funcionar por um tempo, mas depois escapa, daí que a internalização da coerção é fundamental para o poder funcionar em nós, o poder nos entristece e faz com que nos deparemos com a impotência que nos faz desacreditar. Mas a impotência, em grande parte, funciona porque obteve licença para instalar a coerção no próprio desejo, daí que podemos dizer que somos cúmplices e desejamos a própria repressão. É preciso da nossa cumplicidade para que o poder nos use como meros atores de uma realidade social (ver O ego é cúmplice: o desejo deseja sua própria repressão).
Uma vida sem resistência é uma vida que é em grande parte constituída de fora, portanto, muito suscetível a uma cultura de ódio e medo. O ódio impede o pensamento e nos faz transitar na negação do que é diferente dos modelos paranoicos que são oferecidos como “solução” para o “mal do mundo”, passamos a desejar também o poder como garantia existencial.