Literatura

Quarenta anos

Conrad Roset
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Minha última Helena de Troia, a mulher que não era a mais linda do único lugar que eu frequentava quase todos os dias, tinha quarenta anos, dez a mais que os meus trinta que já somavam, com alguma sorte, minha primeira metade de vida, talvez. Não sei por que acabamos se enroscando, acho que foi por inércia dos nossos olhares. Ela me olhou com olhos penetrantes ressaltados pelos seus sobrolhos arqueados na testa franzida e uma boca séria, fui atingido com uma curiosa sensação de maldade e elegância, uma mistura da Rainha de Copas – sem aqueles cabelos horrorosos – com um flamingo. Minha Malévola, seu olhar diabólico contrastado com sua alma florida provocava um sorriso que me cortava, Minha Senhora Maldade, quando sua pele encostava na minha eu sentia o mundo convulsivo se espreguiçar lentamente até adormecer em meu colo como uma criança depois de brincar o dia inteiro com outros três pentelhos sob um sol infernal, Minha… Uma amiga interpretara o caso – Você procura a segurança materna que nunca teve e por isso procura as mulheres mais velhas, é clássico, tem tudo para dar errado. – É verdade, sua beleza era segura e calma como o andar de um tigre de bengala, mas nossas almas eram ambas inseguras, éramos pessoas errantes e falhas, mas juntos nos sentíamos como o Everest sob uma tempestade. É verdade, sua beleza era dez anos mais esculpida que a minha e vinte anos mais experiente que a da minha vizinha que quando escuta chorinho enche meu crânio com pensamentos de morte e é verdade que tinha tudo para dar errado como todos os bons encontros que sempre duram por breves eternidades. Minha Lilith, esses dias vi uma gata branca de cara preta despedaçando um passarinho, ele piava baixinho e ninguém escutava, ele manquejava enquanto uma tímida mancha vermelha se infiltrava pelo asfalto e ninguém via, algumas penugens mansamente bailavam pelo ar e escutei Chopin tocando piano com as cordas dos meus nervos para acompanhar a grande marcha fúnebre do mundo que continuava com pessoas entrando e saindo de shopping centers carregando sacolas cheias e arrastando almas vazias – Como pode o mundo ser tão cruel e belo? – pensei enquanto a lâmina do seu sorriso abria espaço entre as nuvens, e uma chuva de flores, minúsculas calêndulas brancas e amarelas, começou a cair em rodopios sobre os pedaços que sobraram de mim.


Imagem: Conrad Roset

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.