Filosofia

Acreditar neste mundo e nesta vida onde os idiotas fazem parte

Não vivemos em um mundo destruído


Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado. – F. KAFKA


Em um mundo transtornado, onde o poder é profuso, age por sedução e legitimação, onde as forças entristecedoras estão por toda parte e operando inclusive na nossa própria subjetividade, a ameaça de sermos arrastados para estados de impotência é uma constante. Desprezando os otimismos de vontade e fé vendidos em forma de pensamentos e práticas abundantes que desconsideram os aspectos cruéis e terríveis que também fazem parte da existência, pensamos que a questão posta por Deleuze & Guattari é seríssima e ressoa, de algum modo, em todos aqueles que resistem ao fascismo diário do nosso tempo ameaçando aniquilar nossas forças criativas e vitais, tornando-nos mortos já em vida, ou melhor, zumbis teleguiados pelo desejo dominante.

É muito fácil a gente consumir pensamentos otimistas, crenças em outros mundos, cartões aromáticos com frases neobudistas e outras “fofuras”, nada contra tudo isso, cair na inércia catastrofista também é fácil, mas afirmar esta vida e este mundo que temos… isso não é fácil nem acessível à vontade, é uma prática a ser sustentada com o corpo e o pensamento diariamente para que possamos traçar nossas próprias linhas de fuga e resistir às torrentes do fascismo diário, potencial e efetivo, velado e explícito, que compõem os nossos cotidianos e ameaçam roubar as intensidades do desejo.

Contra o peso de nossa época a filosofia ainda é uma das melhores máquinas-de-guerra para escapar com leveza e inventar nossos próprios passos dançantes (ver Para que serve a Filosofia), mas também temos a poesia, a literatura, o cinema, as ruas, os toques, os gestos, os olhares, …

Respirando os últimos acontecimentos de nossa atmosfera tóxica e os reflexos dos nossos campos de concentrações itinerantes, acreditamos que a questão colocada por Deleuze & Guattari é uma das mais fundamentais a se colocar como reflexão diária para forçar o nosso pensamento a encontrar meios por onde ventos mais criadores possam nos tocar.

Não queremos alisar com frases de Buda nem de bem-estar, nenhuma muleta metafísica para satisfazer as veleidades do nosso Eu, queremos chegar ali no nível das forças desejantes, por isso contrapomos toda ordem de otimismo panfletário com essa questão seríssima e das mais urgentes. Pensar positivo? Não, na matemática dos afetos a probabilidade de se entristecer nesse mundo é muito maior que a probabilidade de se alegrar, é por isso que falamos em linhas de fuga, resistência, tornar-se imperceptível… são práticas a serem cultivadas durante uma vida inteira!

Inventar mundos e outras vidas no além para nos redimir dos horrores presentes nesta vida é muito fácil, em outras palavras, negar este mundo da vida que vivemos para inventar outros que possivelmente nos recompensaria pelo sofrimento ou por uma posição mais evolutiva é muito confortável e encerra o pensamento. O Cristianismo está aí, sem concorrentes, nenhuma filosofia no mundo conseguiu oferecer algo mais atraente. No entanto, não queremos salvação em outro mundo se temos este mundo do aqui-e-agora e é nele que relacionamos e cuidamos da nossa existência.

Acreditar neste mundo e nesta vida da qual fazemos parte, eu, você, o outro, o assassino, o covarde, o político debochante, os apaixonados pelo poder, o insultador, o estuprador, os caluniadores de todos os tipos é uma questão fundamental e urgente. Urgente porque uma vez que deixamos de acreditar nesta vida escancaramos as portas para que a impotência exerça seus domínios sobre nós ameaçando aniquilar toda nossa força vital, em outras palavras, docilmente deixamos que outros organizem a vida em nós, em troca eles retiram as intensidades em nós para colocá-las a serviço de um modo capitalista de existir que não suporta outros modos de existir que não lhe sejam devotos. Resistir passa por uma recusa em abrir mão das intensidades desejantes, para quem já experimentou do elixir criador sabe que isso é uma questão de vida ou morte.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.