Literatura

A história não contada de Jesus

Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Um mar revolto de prazer e animalidade rompia em José com tanto ímpeto que se assim o fosse aquele chamado de Vermelho, Moisés e os hebreus teriam se afogados. José e Maria, o homem estremecia, a mulher estremecia, as portas do céu se abriam. Não mais consciência, não mais espírito, não mais senão os movimentos e as vibrações em uma só carne, um só corpo. José sentia a vida gritar dentro de si e Maria a vida derramar-se, quente, dentro de si. Que os anjos sintam inveja, que Deus se empalideça, que o Anjo Caído se alegre, nada disso importa – que a fusão dos corpos seja uma bênção acompanhada de um orquestral de Bach, que seja o único milagre desta única vida não dito por profeta algum. Eis José e Maria, mártires inocentes, extenuados e perdidos no paraíso terreno, José e Maria que aguardavam, após as convulsões da carne, a retomada, pouco a pouco, de uma consciência que ressurgia como uma pena lançada do precipício.


A terra é aviltada há três mil anos por frivolidades eloquentes sobre as paixões;
é preciso pôr fim a tantos males, proceder regularmente em tudo o oque toca
a esse desolador enigma das paixões. FOURIER, C.

Pouco se revelavam um ao outro nos dias feitos de labor e silêncio. O carpinteiro devia ter pelo menos quase o dobro da idade de Maria, uma rapariga de compleição frágil que só se dirigia a José quando se sentia no seu dever de esposa. Conseguiam sobreviver modestamente. José trocava carpintaria por pão, pano, grãos ou o que a vizinhança podia oferecer em troca. Somente quando conseguia trabalho nas construções dos homens da lei é que se dava ao luxo de pôr à mesa também o vinho e a carne. José, o carpinteiro, e Maria, a virgem, José e Maria, os santos, unidos no sagrado matrimônio, caricatura fantasmagórica de um ocidente que nem na criação dos deuses conseguiu ir mais longe que a baixeza de um ego que nos é muito familiar.

“Meu senhor, que Deus te abençoe, esteja contigo e te ilumine com a inteligência que Dele nos provém. Que te guarde desses homens que vivem da luxúria e do pecado, e que do vosso suor possam reconhecer o que lhe caiba no justo”, dizia Maria, à porta, ao se despedir de José que não ocultava da face o peculiar contentamento de quando a carpintaria seria prestada aos abastados.

Ao retornar, Maria servia o pouco que tinham para comer e com contentamento agradeciam aos céus pelo de viver, pelo dia e pela noite que se seguia com ambos estendidos no chão de terra batida forrado com serragens dividindo a única pele de carneiro que tinham. Entregavam-se ao sono, ao silêncio e à expectativa dos sonhos que por demais eram conhecidos como as vias mais enigmáticas das conversações entre Deus, Lúcifer e o homem. As conversações entre luz e trevas ecoam pelos tempos.

Quando apetecia, em momentos antes do dormir ou do acordar, ou mesmo quando a noite havia calado até os grilos e os sapos, e sem meia palavra, José entrava em Maria e esta, também calada, cumpria sua função às demonstrações do esposo. Tais momentos eram raros e curtos, feitos na devida liturgia da procriação, no silêncio e sem muitas mostras dela, a carne, que é fraca e ignora a razão. Só o essencial daquilo que pensavam que Deus deu ao homem e à mulher para ocultarem um ao outro ficava suficientemente à mostra para não ofender aos olhos dele a que tudo vê e tampouco constranger varão e serva que, só esperavam com isso, o recebimento de um filho se assim fosse a vontade daquele que tudo pode. Quanta coisa teria sido diferente, que outro mundo seria se homens e mulheres não nascessem segredados e resguardados entre si e conjecturados enquanto posse, a mulher para o homem e a mulher o dever. Segundo prescrições do Bem em particular que adoeceu o Ocidente a cabeça do homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem e a cabeça de Cristo é Deus.

Mas como se sabe, por mais que Deus tenha lançado a calúnia sobre a carne os corpos sentem, desde sempre, que a vida impele efusivamente aos prazeres. Os rebuliços debaixo da pele desorganizam Deus, os corpos são tomados por forças que ultrapassam a razão, uma guerra que sempre promoveu confabulações sobre o Mal, tentações demoníacas e insolências ao reino dos céus para coagir àquele que ousar experimentar puramente as delícias de uma língua sedenta escorrendo por um corpo de carne – de carne e não espírito! -, ou o inexplicável júbilo que emana das entranhas onde um e outro tornam uno por breve momento e conhecem um paraíso que se esvai como estrela cadente.

Num dia daqueles onde o sol atiça o desconforto no corpo que se esconde sob os mais diversos apetrechos e adornos que encarceram e sufocam a vida por debaixo da pele, em mantos que costumam esconder até as faces, convenções tais que vingaram em seus mais diversos modelos e incrementos, simbolizando quem é e quem não é, José, que chegou mais cedo do que de costume, procurava por Maria que não se encontrava em suas habituais obrigações de provimento ao marido.  “Onde estás mulher que não zelas por mim, o teu marido”, pensou José que pegou uma moringa vazia e saiu em direção ao regato que corria ao leste dos grandes pastos sofridos de Nazaré. Tudo é sofrido, tudo tem que ser sofrido para ser coisa de Deus, e como a dor dilacera a matéria muito antes das ideias, nunca faltaram legiões e mais legiões de sofredores para acreditar em mundos sem dor. Mas pobres criaturas, fizeram do corpo um fardo para se arrastar antes de experimentá-lo, passaram a inventar ideias, e então passaram a agarrá-las com unhas e dentes, deram vidas a elas, e passaram a se matar através delas, e sofrerem através delas, e esquecidas cada vez mais da carne passaram a clamar por respostas sob a imensidão de um céu calado e enigmático, e nada de respostas. E grandes rebanhos se formaram ao redor do nada, e o nada foi preferido à dor e sofisticado através dos tempos.

O terreno indicava presença familiar. Estranhou que vestes parecidas com as de Maria descansavam penduradas no galho de uma robusta oliveira que não se importava em exibir o seu verde em uma região macambúzia de cores amareladas. Aproximou-se disfarçando os tons assustados da respiração, como se quisesse economizar batidas do coração para trocar por mais dias e noites. Rente e ocultado pela oliveira sua respiração estancou quando às margens do regato, Maria, banhava-se sem se importar com a nudez, tal como uma Eva antes de provar do fruto proibido. José sentiu os pulmões exaurirem através dos olhos que nunca tinham presenciado tal Éden com tanto pecado, e sentiu que era bom. O rosto sofrido e vincado pelo peso dos dias era levado pelas águas, restava a Maria nunca vista, a de beleza inocente brilhando debaixo do sol escandalizando os anjos, os anjos, essas criaturas que invejam o tesão.

José, que aprendera que tudo debaixo do sol é vaidade, o que desagradava a Deus que faz vigília pelos justos, foi tomado por forças que lhe subiam as entranhas, assustara-se, não seriam provocações do Diabo? “Misericórdia, ó Pai, tendes misericórdia do teu servo”. Ficou sem saber se usava a mão calosa para com a esposa desobediente, tal como fora aprendido através dos mandamentos do Deus intolerante de Israel, ou se contemplava tão bela criatura que sempre esteve ao seu lado ocultada pelos mais rotos panos que não permitiam entrar nem o roçar dos ventos, assim como mandava o costume: esconder a carne que não tem virtude e nem entrada no reino de Deus. No Além todos são eunucos e condenados à eternidade, lá no Além não se geme nem grita, lá cantam sem sentir dor os cordeiros de Deus, dizem, louvores. Mas o que é cantar louvores a Deus quando temos bocas úmidas que podem se lambuzar? Que é o céu quando temos corpos que quando se fundem criam seus próprios céus? Que é o etéreo quando temos matéria viva para preencher nossos buracos?

Imóvel por fora, mas por dentro uma tempestade de estímulos que pareciam ter acordados todos juntos de um longo sono, José sentira pela primeira vez aquilo que de mais próximo poderia ser chamado da voz de Deus soprarem por todas as fibras de sua carne. Aproximou-se de Maria e a segurou pelas alvas ancas. Receosa, não sabia o que viria de mãos patriarcais como aquela, mas tão logo se deleitou nas rústicas mãos do carpinteiro que a tocava em movimentos descontrolados e desorganizados, e era bom. José e Maria estavam como dois animais puros que usam um o corpo do outro sem pedir licença àquilo que a vida tanto perde quando aprisionada nas convenções de uma vida cujo sexo virou questão de debate, tocavam e entrelaçavam-se tornando tudo e nada quando um entrava no outro arrastando gemidos e ofegações pelo tempo perdido. O reino dos céus então se fez, na terra. Do barro criam-se as formas, mas a embriaguez da carne faz viver.

Possuía Maria e Maria se sentia honrada como Lilith quando descobrira as convulsões deliciosas que podiam brotar daquela tão enigmática abertura. De compleição frágil e oculta, Maria transfundia em uma musa que tocava as cordas da vida compondo uma sinfonia de gozo que se elevava aos céus. Lá, acima de todos os céus do homem, o Céu sagrado, Deus a tudo presenciava e estava tão assustado quanto o púbere quando descobre o mais eficaz remédio contra o tédio e a falta de sentido, e na tentativa de tornar eterno o que tão fugaz é, se extenua até o último movimento de sua recém-descoberta.

Um mar revolto de prazer e animalidade rompia em José com tanto ímpeto que se assim o fosse aquele chamado de Vermelho, Moisés e os hebreus teriam se afogados. José e Maria, o homem estremecia, a mulher estremecia, as portas do céu se abriam. Não mais consciência, não mais espírito, não mais senão os movimentos e as vibrações em uma só carne, um só corpo. José sentia a vida gritar dentro de si e Maria a vida derramar-se, quente, dentro de si. Que os anjos sintam inveja, que Deus se empalideça, que o Anjo Caído se alegre, nada disso importa – que a fusão dos corpos seja uma bênção acompanhada de um orquestral de Bach, que seja o único milagre desta única vida não dito por profeta algum. Eis José e Maria, mártires inocentes, extenuados e perdidos no paraíso terreno, José e Maria que aguardavam, após as convulsões da carne, a retomada, pouco a pouco, de uma consciência que ressurgia como uma pena lançada do precipício.

Cultivavam sob o sol um prazer que nunca aprenderam com os ensinamentos dos grandes patriarcas mensageiros de Deus. Maria que aprendera a ser santa sob o véu não precisou do sacrossanto para ser tão fervorosa como uma meretriz. José que fora formado varão sob os costumes dos patriarcas de Deus, também, tampouco precisou de mandamentos para executar aquilo que a vida naturalmente já dispõe. A natureza ensina a simplicidade inclinada para o prazer enquanto a cultura ensina a complicação e o recalcamento dos prazeres, e bem se sabe, o Deus de todos os profetas que paira sobre nossas cabeças nunca deixou de fabricar firmamentos através da boca dos amaldiçoadores da vida. Condenar, o melhor a se fazer é condenar porque em matéria de prazer o sagrado caduca. O Testamento do Mundo, que fora criado para sustentar os segredos do Céu e da Terra, nada pode ensinar senão à competência para o sofrimento, o julgamento da vida e o que nela quer mostrar-se em vigor.

Nos tempos em que o monoteísmo se preparava para avançar raivosamente contra a vida na terra José e Maria, por breves momentos, já não estavam no céu nem na terra, estavam em um entre tempo e espaço, entre corpos, povos, raças e leis divinas e mundanas. Mas como tudo que é eterno se esvai, e o gozo que antes explodira em forças primitivas que acreditavam mover os céus tem sua queda, e assiste lentamente todas as forças escorrendo de si. Se fosse eterno seria um fardo, e deixaria de ser o que é: um efêmero descanso no coração da vida. Assim, efêmero, foi com Maria e José, e da mesma forma que o varão entrou na serva, sem meia palavra, também se retirou.

Aquele fim de tarde parecia interminável, e ao cair do dia a noite também parecia sem fim. O silêncio foi perturbador, mas não o suficiente para constranger a aurora que despontou acordando os homens e as coisas como se nada tivesse acontecido. O galo gritou e ovelhas saudaram o dia. José e Maria se pudessem não acordar aquela manhã, se pudessem não acordariam, pois não sabiam como se olhar, e quando já não se sabe olhar um ao outro a boca também já não sabe o que falar e nem o corpo como se sentir.

Deveras que, em se tratando de genitália, o povo de Deus edificou a alma e denegriu a carne, talhou a vida no Além e deturpou a que jorra no aqui e agora. Acusam o natural de antinatural, e dizem que o testamento só afaga os corpos que se entrelaçam para procriarem a obra de Deus – profanam contra a profusão de modos com que os corpos nus podem se usar. Tudo o que entra e o que sai, todos os fluidos, poros e buracos do corpo foram catalogados em verbis do Mal. Por tantos anos adormeceu o corpo para depois ser acordado sob as interrogações de um interminável inquérito, mas olhe o céu, ainda é cristão, olhe a consciência, ainda é cristã, ainda precisamos perfumar os ares para que o cheiro do sexo não se revele.

Do dia que José e Maria se devoraram mutuamente nasceu Jesus, nasceu sob o sol das mais saborosas vaidades, gemidos, sussurros e desejos rompidos da inocência da carne. Nem José nem Maria ousaram relembrar aquela tarde de sol ardente. Disseram que o menino cuspido do ventre e das vísceras, banhado a sangue e visco, era um milagre, não dos excrementos, mas de Deus. Maria e José ofereceram Jesus a Deus, e Jesus fora feito segundo a história contada pelos pais, os que já não se sabiam olhar, os que já não se sabiam falar, os que já não se sabiam que se passou depois de um dia de pecado. Jesus cresceu em meio a segredos e silêncios desencontrados, depois passou a escutar vozes, e a dialogar com as vozes, e a misturar um certo tom profético com um certo tom carismático. Um grande homem!

Disse-se de tudo sobre os milagres desse carismático homem que perambulava entre os seus falando sozinho coisas que agradavam os necessitados. Mas Jesus bem sabia que só encontrava sua paz junto de Maria Madalena, doce Maria Madalena de carne tépida e macia como pétalas de rosas, com boca vermelha bem contornada, a perfeita criação de Deus… Jesus preferia Maria Madalena, que se podia tocar e abraçar e cheirar e lamber e amar, preferia Maria Madalena a tudo mais entre o céu e a terra, mas os apóstolos fizeram-no outro. Os apóstolos lançaram a calúnia sobre a vida.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.