Filosofia

A técnica tem contribuído para a nossa alegria de viver?

A produção do desejo - Steve Cutts
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra
Queremos perguntar se a nossa erudição, o crepitar incessante das novas técnicas e conhecimentos tem contribuído para aumentar a nossa alegria de viver. Em meio a uma profusão de vozes ofertando caminhos para o sucesso, o homem, atento às novidades do mercado e surdo aos próprios afetos, parece não saber o que fazer de si. Formamos grandes colmeias humanas enquanto corremos pelas cidades como formigas para ganhar a vida que está cada vez mais difícil, e não obstante a aglomeração de pessoas, somos cada vez mais pobres afetivamente e dependentes de reconhecimento e aceitação social. Nessa “prisão ao ar livre que o mundo está se tornando”¹, não percamos de vista que poeticamente, o homem, fundamentalmente, também habita esta terra.

Alegria de viver, é, no limite, uma das respostas possíveis quando nos perguntam para que servem a filosofia e as artes, e em contrapartida perguntamos, e as utilidades que tanto reivindicam para o conhecimento, de que servem quando o assunto é aumentar a nossa alegria de viver? O mundo da técnica situa cada vez mais a subjetividade em função da lógica produtiva do capitalismo. Cada vez mais o saber é valorado de acordo com a função de mercado e potencial de lucro. Heidegger não parava de alertar, esse saber não colocava as consequências sobre a vida, mas a técnica pela técnica a qualquer custo – a técnica passa a dominar o homem! Não só o saber técnico aplicado à produção material é estritamente vinculado às demandas do consumo, como também, as chamadas ciências humanas vão sendo reduzidas e compactadas para atender aos anseios da rentabilidade. Esse saber é bom para mim? Ele serve para aumentar o meu tesão de viver? – Essa pergunta pode ser de uma estranheza sepulcral quando o conhecimento tem sido avaliado em termos de rentabilidade. Nem mesmo os livres encontros do saber passam sem ser questionados – vai ter certificado? Afinal, para que e para quem serve o nosso conhecimento?

Boa parte do nosso saber é para o capital e não para aumentar a nossa alegria de viver. Em outras palavras, é utilizado para organizar um modo de vida dominado pelo mal-estar, visto que a maioria das pessoas vive arrastando-se para realizar coisas das quais elas não gostam, mas precisam sobreviver. Onde está o nosso tesão de viver? Vai se perdendo na luta diária por uma vida que está organizada para a produção do lucro a qualquer custo, vivemos de pequenos prazeres, o happy hour, o fim de semana, a sexta-feira, um feriado, o consumo, o sexo e a pornografia como descarregadores de tensão, migalhas oferecidas pelo capitalismo para que os corpos não se esgotem totalmente, afinal, é preciso que eles estejam prontos na segunda-feira novamente. E assim repetimos, semana a semana, de prazer em prazer, apenas um fôlego que logo se esvai e não nos possibilita criar uma vida com estados de contentamento mais sólidos para sairmos da nossa situação servil.

Organizar bons encontros, selecionar aquilo que se compõe conosco e nos possibilite aumentar nossa potência de agir no mundo, nada disso é fácil, é um esforço e uma postura para ser exercida durante uma vida toda em meio a possibilidades infinitas de procrastinação. Por outro lado, é preciso dizer que nunca antes tivéramos tantos meios e recursos que podemos usar para criar uma vida mais livre – eis nos, assustados em meio aos excessos e possibilidades, disputados por inúmeras vozes que oferecem caminhos de sucesso para seguir e, como vespas alcoolizadas, perdidos. A técnica não nos ajuda a escutar melhor os nossos afetos, a nossa bússola existencial por excelência. A arte de lidar com os próprios afetos coloca tanto o camponês como o phD do MIT em condições mais ou menos iguais quando o assunto é contentamento de viver.

Não nos espantamos que vivemos em nossas gaiolas, com ou sem vista, seja em família ou no trabalho, em ambientes cada vez mais desinteressantes, super brancos como gelo do ártico, amontoados em trânsitos e aglomerados de consumo, com nossas caras sérias e insípidas, duras e sem expressão de desconhecido para desconhecido. Formamos grandes colmeias humanas enquanto corremos pelas cidades como formigas para ganhar a vida que está cada vez mais difícil, e não obstante a aglomeração de pessoas, somos cada vez mais pobres afetivamente e dependentes de reconhecimento e aceitação social. Desesperados, queremos estar nas casas de barulho e entretenimento mais cobiçadas com amigos ou inimigos com que se tira fotos olhando obliquamente para o alto enquanto se força um sorriso sem graça e matraqueamos que bebemos porque temos medo de dizer o que gostaríamos de dizer e pegar muito mal e já nem temos paciência e nem suportamos o silêncio e tememos mais a solidão do que a morte apesar de consumirmos pequenos ensinamentos de budismo e de filosofia para estressados… prazeres em pequenas doses. Reconheçamos, a capacidade de o capitalismo organizar pequenas doses de prazeres instantâneo e legitimar toda miséria social como se fosse uma questão individual é extremamente sofisticada.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.*

Desvinculado da vida, o pensamento passa a ser um conjunto de técnicas e funções para organizar a sobrevivência em função do capital que exige mais em menos tempo. Não é por acaso que somos bombardeados diariamente por “técnicas fantásticas” para memorização, leitura e absorção de conteúdos em minutos, a quantidade pela qualidade, e não é preciso dizer o quanto temos uma postura de repulsa ao aprendizado e aos estudos porque estão profundamente desvinculados com a vida. Pensar pode ser que esteja se tornando um exercício cada vez mais raro diante da necessidade frenética em consumir conteúdos mastigados e protocolizados que possam ser aplicados na produção material da vida. Uma imagem e um título sensacional tem sido o conteúdo que o homem contemporâneo mais tem conseguido digerir, e por poucos segundos, sua paciência dura menos que a obsolescência dos gadgets.

pra quem serve teu conhecimento?

O grande problema é que toda essa produção de saber reduzida à lógica de mercado é inútil – tal como seria uma cadeira de rodas para alguém que não tem nenhuma deficiência física que o impeça de se locomover – para nós que somos movidos por uma produção inconsciente de forças desejantes e afetivas apesar de nos imaginarmos como senhores deliberativos de si porque supomos que podemos escolher ir até a padaria ou não neste exato momento, sendo tudo uma questão de vontade. Reduzidos a essa maneira de se relacionar com o conhecimento, ficamos muito servis aos desejos produzidos em nós, o desejo, que nos arrasta sem que saibamos, enquanto nos esforçamos para manter a fachada de uma vida bem-sucedida conforme os ditames da felicidade moderna, quando no fundo, eis nos, prisioneiros em nossa própria mente, muitas das vezes solitários e infelizes sendo levados junto às massas disformes que ocupam o concreto e o aço das cidades.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.*

Aquilo que estamos fazendo com as nossas vidas tem contribuído para produzir mais contentamento?
De que adianta tanta inteligência e capacidade para aumentar a potência do capital se o nosso tesão de existir está tão em baixa e o mal-estar reflete no ódio dos homens uns aos outros nas questões mais banais da vida cotidiana? De que adianta tanta técnica sem inteligência emocional? O que pode a técnica diante da criação de modos de vida mais alegradores? Nossa potência de produção econômica aumentou drasticamente, pudera, somos estimulados desde pequeno às questões econômicas, temos uma economia inclusive dos afetos, economizamos elogios e desperdiçamos julgamentos. Se queremos fazer História em termos de progresso, tenhamos a decência de nos situarmos também, e a nossas métrica não é econômica, em outras palavras, perguntemo-nos, com os ecos de Foucault, se aquilo que estamos fazendo de nossas vidas tem contribuído para produzir mais contentamento.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.*

Em todas essas questões que poderiam ser problematizadas infinitamente, estamos falando do homem que não sabe lidar com a produção afetiva e desejante. O homem que, diante das forças afetivas e desejantes, ao invés de buscar conhecê-las, e para isso seria necessária uma compreensão que em nada se obtém através do conhecimento dominante que compreende um conjunto de instrumentos e técnicas que devem encontrar conexões funcionais com a produção capitalista, o homem tenta sufocá-las sem perceber que está sufocando a própria vida que uma hora ou outra irá pedir socorro através de sintomas que vão arquitetando, silenciosamente, quadros de sofrimento diversos.

(…) a vida é sempre um processo de ruptura, mas os golpes que fazem a parte dramática do trabalho— os golpes fortes e súbitos que vêm ou parecem provir do exterior—, aqueles de que nos recordamos, nos quais pomos a culpa por isso ou aquilo, e a respeito dos quais, em momentos de fraqueza, falamos aos amigos, não mostram de imediato todo o seu efeito. Existe outro tipo de golpe que vem de dentro— que não sentimos até ser tarde demais para fazer alguma coisa, até entendermos, de maneira categórica, que em algum sentido nunca mais seremos os mesmos. O primeiro tipo de ruptura nos parece ocorrer de repente. O segundo acontece quase sem que a gente note, mas sua percepção vem de um momento para o outro. FITZGERALD, F. S. O colapso nervoso

Buscar compreender as forças desejantes e afetivas em nós é privilegiar, antes do capital, a vida. Em matéria de potências para a vida ainda somos crianças assustadas que correm em busca de nomes técnicos para se resguardar das sensações que não se encaixam na organização econômica da vida. Somos pouquíssimos estimulados a esse tipo de sabedoria, daí que somos tão suscetíveis à falta que pode ser traduzida, no fundo, como carência afetiva, necessidade de ser reconhecido, amado e aceito e, ao mesmo tempo, um desespero para afastar aspectos inexoráveis à condição humana como o sofrimento, a solidão, as crises e dores existenciais. E é desses lugares, tão comuns a qualquer um de nós, que o homem que vive na ignorância, mas repleto de técnicas e protocolos, dotado até mesmo de grande inteligência e memória, é descarrilhado e passa a ser arrastado pelos afetos do ódio e da ira como tentativas de afastar a tristeza – o fascismo também é diplomado! E nessa condição, querendo que todos odeiem ou se alegrem de acordo com as próprias inclinações, nessa imaginação tão servil, os homens acabam por se odiarem, todos, mutuamente – sabedoria spinozana.

É também em Spinoza que encontramos o conhecimento não como dominação do homem sobre a natureza, mas enquanto o mais potente dos afetos. Um conhecimento enquanto potência para se afetar nos permite cultivar aquilo que melhor nos compõe conosco, por assim dizer, uma seleção dos encontros nos possibilitaria entrar mais em contato com afetos que aumentariam a nossa potência de agir, tornando-nos mais livres e ativos na criação da própria vida, algo que por demais não está ao alcance da maioria dos homens de uma contemporaneidade cuja produção de conhecimento e técnicas não para de crepitar assim como os índices de depressão não param de aumentar enquanto o tesão de viver está sempre em baixa no grande teatro do gozo, onde o abismo entre aquilo que realmente fazemos e aquilo que queremos nos mostrar tem cada vez mais se alargado.

O que o homem que despreza a filosofia e as artes, a lentidão e a paciência necessárias para o desenvolvimento do pensamento, o que esse homem que esconde sua própria ignorância sob as sombras de um chamado conhecimento prático e objetivo faz quando não é aceito ou reconhecido socialmente? Ele corre para se esconder na primeira toca que encontra, e de lá passa a odiar tudo aquilo que ele não compreende, e por não compreender vê tudo como causa da sua própria tristeza e, esvaziado do tesão de existir, é muito fácil se afogar nesse grande oceano de ódio que nos cerca.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.*

Desenvolver a potência da mente para compreender as forças desejantes e afetivas e com isso ter uma seletividade maior diante daquilo que nos acontece, isto é, ter um maior controle sobre aquilo que pode nos alegrar e evitar o que pode nos entristecer, e ainda que nos entristecemos – inevitável! – não nos percamos em falsas acusações e julgamentos que nos levem a culpabilizações e ressentimentos, além de ser muito spinozano, é praticar o que os gregos estoicos se aprimoravam há milênios através de experimentações e técnicas não direcionadas para aumentar uma potência externa (no nosso caso, o capital), mas para aumentar a potência da própria vida. Esses gregos, que podemos situá-los numa corrente de pensamento chamada estoicismo, praticavam o que Foucault buscou compreender através do que ele chamou de cuidados de si.

O conhecimento para esses gregos, diferente do que costuma ser para nós, não era uma potência instrumental para se exercer domínio sobre a vida, mas uma potência a favor da vida. Através de relações de aliança com a natureza e os homens, buscava-se compreender a melhor maneira de viver. Nós não somos aliados à natureza, acreditamos que a técnica pode sempre se sobrepor as forças da vida.

Nós nos distanciamos demais desses gregos, é verdade, o próprio termo cuidados de si parece não fazer sentido para quem é doutrinado a praticar economia de si, precisamos retornar a esses gregos que sempre tiveram e terão muito a nos ensinar não muito sobre técnicas para produzir mais em menos tempo, mas sobre “técnicas” que podem nos ajudar a compor melhores modos de viver.

[Continua em Estoicismo: sabedorias para viver melhor]

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Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.*


1. Termo usado por Theodor Adorno na crítica que faz da técnica em seu livro Prismas – Crítica
Cultural e Sociedade.

* Trechos do texto Eu sei, mas não devia (1972) de Marina Colasanti

Ilustração de Steve Cutts

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.