Como fazer para não vir a ser fascista mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nossos discursos e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como caçar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento?¹
Iniciaremos uma série de textos que tentará pensar o fascismo, não somente aquele ideológico de Hitler e Mussolini, mas “(…) o fascismo que está em todos nós, que assombra nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma que nos domina e nos explora.²”
Para não se perder em meio a tantos fluxos que essa temática desencadeia, tomaremos como norte o consagrado Prefácio escrito por Michel Foucault à obra O Anti-Édipo de Deleuze & Guattari para propor a seguinte temática:
PARA UMA VIDA NÃO-FASCISTA
Mas afinal, o que seria uma vida não-fascista? É possível desenvolver modos de vida contrários às formas fascistas? É possível resistir? O que podemos quando o mundo nos constrange o tempo inteiro à impotência? Perguntas estas que tentaremos desenvolvê-las. De antemão, adiantamos, sabemos que um modo de vida não-fascista é uma arte de viver, algo a ser cultivado na relação consigo mesmo e com o outro, um cuidado de si a ser exercido constantemente a partir dos encontros com o mundo.
É fácil pensar o fascismo enquanto acontecimento histórico restrito a dois líderes políticos. Mas Hitler e Mussolini foram apenas duas figuras que souberam conduzir o desejo das massas. Massas que não foram meras vítimas, para lembrar Reich, mas que em dado momento desejaram o fascismo. Daí que é fundamental pensar o nosso desejo e suas relações com o pensamento, a ação, a política, os afetos, … a vida! Não mais o desejo enquanto categoria do negativo, mas como a própria produção da vida.
Depois das duas guerras, depois de Auschwitz, depois de Freud e Marx e seus pensamentos estruturalizantes… O Anti-Édipo é um livro turbulento que vem em meio (ou depois) de turbulências. Publicado em 1972, nas palavras de Foucault, é um livro que não se lê como referência teórica, mas se aborda como uma ética e uma arte de viver. Um livro que Foucault também disse que poderia ser abordado como uma introdução à vida não-fascista.
O Anti-Édipo se vê confrontado, diz Foucault, por três inimigos que possuem graus diversos de ameaças: 1) Os terroristas e os funcionários da verdade, aqueles que se preocupam mais em fazer da teoria uma ordem pura da política e dos discursos, também chamados de burocratas da revolução; 2) os técnicos do desejo, que querem reduzir a multiplicidade em formas binárias estruturadas pela falta; e 3) o inimigo maior, o fascismo (não só apenas o ideológico) que ronda e está em todos nós.
Percebe-se que encontramos, nos dois primeiros inimigos, os espectros de Marx e Freud que de algum modo intelectualizaram o que se entendia até então por revolução e desejo. Contudo, entendemos que o O Anti-Édipo quer ir além, não os nega, mas situa-os como insuficientes porque, enquanto um pensou o indivíduo a partir da relação com as macroestruturas sociais e políticas e o trabalho, o outro pensou o indivíduo na família burguesa. Nesse sentido, essa obra (intensiva!) de Deleuze & Guattari vem como novos possíveis em meio a velhas formas, uma insurgência às tradicionais segmentações do indivíduo para colocá-la em sua relação circulante através da introdução de um desejo que se dá por fluxos – produção e não falta – incessantes que se conectam ou não, que se intensificam ou não com a produção do mundo.
Acreditamos que essa arte de viver ou essa ética que visa à criação de modos de vida contrários aos modos fascistas que produz tanta impotência e entristecimento não se dá não somente contra o Estado e o Capital, os poderes opressores e as estruturas macromoleculares, mas, sobretudo, na relação consigo mesmo e com o outro, a partir da própria imanência de uma vida que é produzida e nos produz. Seguiremos adiante tentando pensar seguindo as linhas que Foucault, se fosse pensar O Anti-Édipo como um guia da vida cotidiana (não-fascista), assim resumiu:
- Liberem a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante.
- Façam crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, e não por subdivisão e hierarquização piramidal.
[TEXTO 2] - Livrem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, as castrações, a falta, a lacuna) que por tanto tempo o pensamento ocidental considerou sagradas, enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade.
[TEXTO 3] - Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária.
[TEXTO 4] - Não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de Verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele não passasse de pura especulação. Utilizem a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.
[TEXTO 5] - Não exijam da política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação e o deslocamento, o agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o liame orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”.
[TEXTO 6] - Não se apaixonem pelo poder. [grifos meu] (…)
[TEXTO 7]
Textos relacionados já publicados por aqui:
- Introdução à vida não-fascista
- Não se apaixone pelo poder
- O ego é cúmplice: o desejo deseja sua própria repressão
1. M. Foucault in O Anti-Édipo, Deleuze & Guattari, Editora 34 (Prefácio).
2. Idem