Desde 1789 sustentamos uma política representativa pautada em forças tirânicas, românticas e utópicas. A salvação esperada por uma gestão exterior! Que romantismo feio!
Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do “socialismo” burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto-sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. – F. GUATTARI, Revolução Molecular
Carregamos um estado em nós, é o que faz com que todos gritem por um governante, por mais leis e mais normas, por mais direitos, carregamos um modelo de agir e de pensar que exige uma instância que nos governe, de outro modo como seria? -As vigilâncias internas do estado cumprem muito bem seu papel e o pensamento se encerra aí mesmo, já não consegue enxergar além dos próprios muros internos.
O estado somos nós, e isso é tão bem implantado que a maioria vai viver e morrer uma vida inteira voltada para preservar e fortalecer o parasitismo de uma elite burguesa enquanto pensava que estava lutando por um país melhor se posicionando a favor ou contra determinados grupos. Enquanto a gente se mata e espalha a miséria defendendo políticas partidárias e esperando por políticas que venham nos salvar os parasitas vão se fortalecendo ainda mais… desde 1789!
Grite, vote, pinte-se de vermelho ou azul, veja todos os jornais e anote os corruptos, pegue a calculadora para contabilizar os valores desviados, ouça as propostas dos governantes e veja quem é mais simpático e com melhor vocabulário, atente-se aos jornais de horário nobre. Distraia-se!
O político é apenas o ventríloquo de um poder parasita maior e difuso que não é burro – o poder não é burro! – em escolher uma ou outra cor partidária, se ele o faz é meramente enquanto estratégia de um jogo cujas peças são movidas para criar oportunidades de aumentar ainda mais as suas posses. Os dominantes estão o tempo todo criando oportunidades para proliferar ainda mais o parasitismo sobre a vida através de nós, agentes sociais que estamos aceitando cada vez mais as regras de uma política enquanto jogo paranoico. Nós, os perdedores por excelência… desde 1789, mas com a ilusão de que a corrupção, a compra de votos, as esmolas políticas, as forças malignas e do mal trapacearam colocando no poder pessoas incapazes de gerir o bem-estar de nossas vidas, nós que não conseguimos gerir o bem-estar de nossas vidas e esperamos que uma instância o faça por nós, então o culpado é sempre o outro, e o outro pensa exatamente o mesmo, e assim mantemos inalterada, de 4 em 4 anos – o que é importante para criar a ilusão de que podemos escolher as pessoas certas que darão um jeito no país – a paranoia sem fim.
A ordem social é tão atolada em uma política de jogo partidário, com suas instâncias e especificações, com infindáveis leis e normas, é tão crente de que a democracia é o que há de mais justo que, diante do primeiro posicionamento fora desse modelo, a resposta, entristecedora e impotente, é de que não há outro jeito se não for assim!
Não se trata de pensar em algo para colocar no lugar. Não se trata de negar esse modo político paranoico que está aí funcionando com partidos, corrupção, câmaras, coronéis, corporações, mídias oligárquicas, bandeiras, discursos infindáveis de ódio e medo… Ao menos tenhamos a decência de cuidar do esgoto midiático que é despejado diariamente em nossas casas nos convocando para a guerra no dia seguinte, cujo efeito mais perverso sentimos diariamente na forma de impotência generalizada, na feiura e na brutalidade diárias que são impressas nos gestos, nas palavras e nos olhares de impaciência e mal estar diante do outro, além das formas bestializadas de violência mais evidentes (ver 10 estratégias de manipulação da mídia). O que se pede é um pouco de decência de levar o pensamento adiante, recusar-se a jogar o jogo de uma política paranoica de acusações infindáveis e não se submeter às palavras de arautos que se anunciam como salvadores da pátria.
Politicamente somos bárbaros o suficiente para ainda discutirmos se o problema é do capitalismo ou do socialismo em uma era onde o capitalismo é global. A questão não é o posicionamento, nós não precisamos de posicionamento, nem capitalismo nem socialismo, não se trata de ser mais conservador ou mais liberal, é o estado cristalizado em cada um de nós, é o fascismo entranhado em cada um de nós que clama por essas instâncias de aprisionamento da vida. E enquanto não desconfiarmos do fascismo que nutrimos em nossos modos de vida não faremos mais do que berrar a favor de um ou outro estado – mas sempre um estado! – que corrija os erros do mundo.
O “inimigo” varia de rosto: pode ser o aliado, o camarada, o responsável ou si próprio. Nunca pode-se estar seguro de que não se vá resvalar a qualquer momento para uma política burocrática ou de prestígio, uma interpretação paranóica, uma cumplicidade inconsciente com os poderes vigentes ou uma interiorização da repressão. – F. GUATTARI, Revolução Molecular