Quanta crueza sobre si mesmo não é necessária para romper diques que fomos construindo com a massa pedagógica de uma sociedade da qual herdamos? Que uma certa crueza seja vista como potência para nos limpar da poeira fascista com que vamos sufocando as vitalidades. Nós não recuamos diante de pensamentos que produzam vergonha em nós, queremos desfazer o ego. A produção de modos de vidas apaixonadas pelo poder é uma produção de berço. Nesse sentido, se o pensamento produziu vergonha em nós é porque denunciou, de alguma maneira, nossas impotências e cumplicidades. O desejo não pode ser enganado, o desejo deseja sua própria repressão. Atualizando Reich e na contramão de um ego acostumado a inventar desculpas, nós não iremos passar a mão na cabeça – “Eu não fui enganado, em algum momento fui cúmplice com aquilo que produziu impotência em mim”. Pode se ir mais longe, o que há de cúmplice com o fascismo que habita em cada um de nós?
Amor e ódio, desespero, piedade, cólera, nojo – que são essas coisas no meio das fornicações dos planetas? Que é a guerra, a doença, a crueldade, o terror, quando a noite apresenta o êxtase de miríades de resplandecentes sóis? Que é essa bobagem que mastigamos em nosso sono senão a lembrança da picada dos dentes da serpente e do amontoado de estrelas? (HENRY MILLER, Trópico de Câncer)
Em uma de suas aulas* Cláudio Ulpiano diz que a filosofia deve produzir pelo menos vergonha na gente. “Uma aula de filosofia é coisa seríssima”, e continua, “é tirar a filosofia desse campo de tolice que ela passou”. Tirar a filosofia do campo de tolice nos remete a uma filosofia que nos serve enquanto prática de guerra, uma filosofia que funciona em nós e se mistura com a matéria do vivido. A filosofia está muito além da imagem de uma filosofia caricaturada na figura de um professor que em sala de aula apresenta conceitos dos pensadores que vingaram na história do pensamento (ver Para que serve a Filosofia?).
A filosofia deve produzir vergonha na gente… São palavras que podem ferir o ego de quem tem uma relação muito representativa com o pensamento, mas se a gente tem compreensão de que o pensamento é produto de um complexo de relações entre forças, entre elas as relações de poder de um social que produz um dado real, nós no mínimo daremos as boas-vindas a pensamentos que nos envergonhem, acolhemo-los como forças que irão nos modificar.
Quando o pensamento produz vergonha na gente é porque atingiu a impotência em nós. E onde há impotência há também cumplicidade – de algum modo. Em tempos onde o poder se faz presente muito mais pela sedução do que pela imposição, não há um de nós que não esteja imune a certos flertes, amores e até mesmo paixões pelo poder.
Não se apaixonem pelo poder, conforme diz Foucault em seu prefácio ao Anti-Édipo, é algo que deve ser exercido através de um combate diário em um mundo cuja paixão pelo poder está no espírito capitalista. Se a produção desejante no capitalismo é marcada pela impotência o desejo já nasce desejando poderes como garantias para a vida. Desde crianças vamos sendo ensinados a flertar com o poder como elemento garantidor da vida, e assim as relações costumam se “valer” dominantemente pela posição que cada um ocupa dentro de um campo social. No lugar da potência criadora uma estimulação à conservação através de poderes. Diferente da potência que precisa ser exercida em ato, sempre em situação, o poder, de antemão, equipa o sujeito com certos atributos que falam por ele. Por trás de todo poderoso há um corpo impotente incapaz de exercer uma ética da criação junto aos seus, daí que precisa que poderes discursem por ele, para conservar-se – você sabe com quem está falando?
Em síntese, a produção de modos de vidas apaixonadas pelo poder é uma produção de berço. Nesse sentido, se o pensamento produziu vergonha em nós é porque denunciou, de alguma maneira, nossas impotências e cumplicidades com poderes que nos oferecem garantias. É próprio de um pensamento potente produzir alguma potência em nós. O impacto pode vir através da vergonha.
A filosofia enquanto prática de guerra é capaz de produzir vergonha em nós, ela serve para prejudicar que a tolice e a imbecilidade sejam maiores do que já são, serve para denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas (Deleuze, Nietzsche e a Filosofia). Antoine Roquentin, personagem central de “A Náusea”, de Sartre, em algum momento diz que gostaria de escrever um livro, mas um livro que envergonhasse os homens – é algo belo! De que adianta os livros que não nos atinjam de algum modo? Um livro deve funcionar em nós! Kafka diz belamente que um livro deve ser um machado para o mar congelado que há em nós.
Nós não estamos em vias de modificar percepções cada vez mais conservadoras e radicais através de discursos. É necessário atingir o fascismo indiretamente, produzir algo. Vergonha? Se tem algo que funciona muito bem contra a imbecilidade e a tolice é fazer o tolo se ver diante da sua própria tolice. E a filosofia tem essa capacidade de fazer o “rei nu” se ver nu diante de si mesmo enquanto achava que estava com as melhores vestes do reino. Nesse sentido, devemos entender essa vergonha não nos moldes da culpa que nos apequena diante da vida, mas uma vergonha que denuncia o nosso mau jeito de existir, capaz de produzir grandes diferenciações em nós de modo que passamos a re-avaliar aquilo que estamos fazendo de nós mesmos – questão colocada por Foucault.
A questão de Reich “As massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo em determinado momento!” é incômoda. Nós podemos atualizá-la visto que carrega um certo tom marxista, massas nos remete a classes, mas podemos usar pessoas, nós! E aí… “Eu não fui enganado, fui cúmplice em determinado momento” – joguemos isso no centro do ego para sentir os incômodos efervescerem.
A potência incomoda a impotência do poder. E quanta crueza sobre si mesmo não é necessária se aspiramos a mudanças? Como romper diques que fomos construindo com a massa pedagógica de uma sociedade da qual herdamos? Nós herdamos um mundo carregado de valores cristãos, herdamos uma razão que desprezou as paixões e os afetos, herdamos maus jeitos e perspectivas impotentes de viver – se Nietzsche praticava uma filosofia à marteladas é porque sabia ser necessária uma crueza para transvalorar os valores dos quais herdamos.
Nós não vamos conseguir grandes mudanças sem exercer uma certa crueza sobre nós, que crueza é essa? Aquilo que nos envergonha e nos obriga a pensar, por assim dizer, nos arranca do lugar, é um bom começo! Mas de modo algum essa crueza é aquela em que se coloca como sofredor à espera de um reconhecimento. Novos nascimentos não se dão sem dor, mas essa não é aquela dor que pede por compaixão e reconhecimento. Fazer um bom uso da dor e do sofrimento em linguagem spinozana seria algo como ir em busca das causas adequadas daquilo que nos acontece.
Aquilo que a gente reclama no mundo e nos outros pode morar ao lado. A gente reclama das novelas mas continua assistindo, a gente reclama do consumo mas consome coisas inúteis, a gente reclama que as relações estão cada vez mais virtuais mas nos limitamos cada vez mais a curtidas e smiles… Querendo ou não, cada um de nós é cúmplice com a vida que sustenta. Essa é a imagem de si mais terrível de se olhar, mas extremamente necessária se quisermos falar de efetivas mudanças.
Étienne de La Boétie, em seu “Discurso da servidão voluntária” diz, e é necessário imaginá-lo tomado por um tom de espanto, que quanto mais os tiranos roubam e exigem, quanto mais se dá e se presta aos tiranos, mais eles se fortalecem, no entanto, se não lhes der nada acabarão ficando pobres e sem nada, sem ser preciso luta ou combate. Belamente, ele se utiliza de uma imagem, os tiranos são o fogo cujo alimento se dá pela lenha, mas quem alimenta o fogo? O quanto de lenha estamos oferecendo para manter chamas de poderes acesas? O quanto de cumplicidade há em nós diante daquilo que reclamamos? Enfim, o desejo não é enganado, nunca o desejo é enganado, ele pode ser capturado e dirigido para outros fins, mas nunca enganado. Deleuze e Guattari fazem coro a Reich: O desejo deseja sua própria repressão. (Deleuze & Guattari, O Anti-Édipo).
O desejo deseja sua própria repressão… isso é um soco na existência meu amigo, nocaute dado pela filosofia, assim como Reich o fez através da psicologia, e assim como tantos outros pensamentos carregados de potência são capazes. A intenção não é destruir, mas não é passar a mão na cabeça. É para fazer acordar, acordar-nos do sono profundo de uma interioridade cheia de culpa, má-consciência, fantasmas e impotência, é para quem sabe nos acordar da tolice dos dias construídos pelas convenções, pelos discursos comuns, pelos ditos e não-ditos familiaristas e pelos atos ditados por uma cultura midiática. É para tirar a vida da tolice, porque a vida não se restringe a essas formas estupidificadas dirigidas pela indústria do entretenimento. E acredite… o momento fatal é o do despertar, um homem que desperta do sono profundo de uma vida inautêntica pode não ter corpo o suficiente para se sustentar, e ele corre, corre em direção ao conforto do conhecido, e como conhecemos bem nossos sofrimentos e tão pouco os nossos tesões, não? Na clínica, o manejo do despertar é fundamental para que esse “novo homem”, por assim dizer, não se intimide diante de um novo desvelar de mundo.
Que uma certa crueza seja vista como potência para nos limpar da poeira fascista que vai se acumulando em nós, nos gestos, nos olhares, nos posicionamentos, nos discursos e nas ações. Que a filosofia, o pensamento, enfim, seja capaz de nos colocar frente a frente com a nossa própria tolice e a nossa própria impotência, que nos envergonhe daquilo que estamos fazendo de nossas vida e tire o nosso mundinho dos trilhos se necessário. Quanta complacência para conosco nas tantas idas e vindas com que tentamos justificar – enganar! – nossa inautenticidade para com a vida! Uma vez mais, o desejo nunca é enganado, o desejo deseja sua própria repressão, olhemos para as nossas cumplicidades diante dos maus jeitos de existir.
O sofrimento não é pessoal, o que é a nossa dor e o nosso sofrimento diante dos partejamentos do mundo? É necessário imaginar-nos na nossa insignificância diante do movimento dos astros, dos recônditos de um universo frio e indiferente que vela pelo inaudível da vida, é necessário… parar ao menos de ficar puxando fios de pensamento para tecer conjunturas às nossas impotências, ao menos tenhamos a decência de se saber cúmplice, nós sabemos, sabemos que não podemos nos enganar, então por que insistimos?! A capacidade que temos de viver nossos momentos de impotência, quando nada em nós parece se diferenciar e a indiferença é os dias e as noites, a capacidade de viver a impotência depende de uma certa ética da crueza, e uma crueza cuja potência acredita na vida enquanto algo maior que as nossas vãs vidinhas edipianas que herdamos, do contrário iremos procurar a sombra de uma cruz para lamentar junto a um mundo de lamentações, muitos aparecerão para passar a mão na cabeça, será confortável, mas aquilo que precisamos para mudar é algo cuja força seja capaz de nos arrancar do lugar comum. A filosofia não é a única maneira, mas para os que conhecem na pele o que pensamentos podem fazer conosco, nós dizemos sim a uma filosofia que produza vergonha em nós para que nunca percamos de vista aquilo que estamos fazendo de nossas vidas!
“(…) em todo querer-conhecer já existe uma gota de crueldade. – NIETZSCHE, Para além do bem e do mal
* Transcrição de trecho da aula Pensamento e liberdade em Espinoza em vídeo de Cláudio Ulpiano