O desejo não é falta, é produção. Sabe quando sentimos que sempre falta algo em nossas vidas? Quando parece que sempre estamos à espera? Essa obsessão insana por virar adulto, estudar, possuir títulos, comprar um carro, ser empreendedor, estar sempre sorrindo… e continuar comprando? Sabe quando funcionamos na lógica do se eu não for aceito, se eu não tiver, se eu não for amado… Estamos falando de algo muito concreto – muito concreto! O desejo enquanto falta é esmagadoramente constituinte da nossa formação subjetiva e financia os poderes-saberes que atuam em nossos corpos tornando-nos impotentes, mas essa não é a natureza da vida. Não é algo simples de compreender, estamos falando de ir na contramão de toda uma cultura de pensamento ocidental milenar. A persistência nessa aventura pode valer muito a pena. A compreensão de que o desejo não é falta e sim produção e criação pode nos tirar da posição de ter que pedir licença para existir tal como somos, com todas as nossas esquisitices.
[Texto revisado e ampliado em 30/05/2015]
O desejo enquanto produção muda radicalmente nossa experimentação com a vida quando o sustentamos não enquanto pensamento ou ideia, mas com o corpo, enquanto ética e estética de si. Não há carência, há transbordamento, a vida é da ordem do excesso. E no entanto, por que o pensamento ocidental (principalmente) tomou o caminho da falta e da carência que esmaga nossa produção desejante desde o berço?
A psicanálise que o diga, nada se opera no divã sem a falta, o sujeito maduro é aquele que docilmente aceita essa falta enquanto constituinte de si. Viva a castração! Ora, quem disse que nos falta algo? Para admitirmos que falta algo ao desejo é necessário, antes de qualquer coisa, admitir um transcendental ou universal para só então permitir a vida passar, e daí que já é uma vida desqualificada. Lamentável história do desejo! Quando não é a Lei, é o Pai, quando não é o Pai é a Mãe… um Significante, enfim, temos sempre um Universal ou Ideal para rebaixar a vida.
De onde vem essa necessidade de castrar? E o pior, de onde vem esse gosto quase que injustificável pela castração como se ela fosse inerente à própria natureza? Dirão que o desejo tem natureza má, herança de padre? O desejo é inocente, como a beleza que com sua doçura vai nos desmanchando deliciosamente sem que saibamos por que, o que não quer dizer que as maneiras de expressar não tenham consequências. As questões que se colocam são muitas, ultrapassam os limites desse texto, mas será a partir daí que puxaremos alguns fios de pensamento que não tem pretensão de chegar a um lugar final, aliás, “chegar a algum lugar” é mais um dos tantos lugares ideais criados pelo pensamento representativo, o modo de pensar da falta.
Conseguir romper com o ciclo vicioso da falta implica em uma nova estética de si. Sair da reprodução e da representação para a produção e a criação implica romper com toda uma pedagogia autoritária que vai sutilmente se instalando nos espaços e investindo sobre nossos corpos – e sempre com muitas boas intenções. Em tempo, aos que acusam esse modo de vida pelos negativos da rebeldia e da negação, resta dizer: trata-se de transbordamento, transbordamento de vida. Questão de preferir a alegria de um Dionísio cantando e dançando como um desvairado à chatice austera de um Platão que acusava a vida de faltar algo que jamais poderia se preencher. Romper com essa tradição, antes de tudo, é uma questão de vida ou de morte. E é bem verdade que toda vez que se contrapõe à lógica da falta incômodos acontecem, afinal, mais do que uma questão psicológica, o desejo enquanto falta é também uma questão política. No esteio de Deleuze & Guattari o desejo é revolucionário, porque sempre quer mais conexões, mais agenciamentos.
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