Deus é dinheiro na religião feroz do capital. Na sociedade do espetáculo o antigo padre se reformou, é pop, é sertanejo… mas inexpressivo diante do padre por excelência, o publicitário que oferece a interpretação dos signos do dinheiro, credenciando vidas capazes de obter reconhecimento e aceitação diante de um outro imaginário. Decifrar a vontade do dinheiro é alcançar a via-crúxis de um gozo que promete cada vez mais, e mais, e mais, e… continuamos em dívida porque a vida que temos é sempre fracassada e infeliz diante dos desígnios da sociedade do espetáculo que não para de produzir vidas inalcançáveis. Seguindo por esse trajeto o rebaixamento da vida na falta e na culpa também é cada vez mais, e mais, e mais… dívida infinita do desejo!
O espetáculo é o sol que nunca se põe
no império da passividade moderna.
Guy Débord (A sociedade do espetáculo)
Os clérigos, durante muito tempo, formaram uma classe social a parte dada sua importância de intermediação entre o sujeito e uma ordem (social) moral do mundo. A falta e a culpa eram produzidas – e geridas -, sobretudo, através do clero enquanto legítimo porta-voz das leis divinas que norteavam as concepções e os modos de vida. Em outros termos, a figura do padre tinha importância fundamental na produção de um modo de vida faltante e as penitências para intermediar o sujeito e a culpa.
Seguindo o pensamento de Walter Benjamin a partir das palavras de Agamben, o capitalismo é uma religião feroz, celebra o culto ininterrupto do trabalho cujo objeto é o dinheiro, deus se tornou dinheiro e o banco assumiu o lugar das igrejas. Os padres são todos aqueles que manipulam e administram o desejo, sendo o publicitário a serviço do dinheiro (deus) o mais nobre de um “clero” que pode comportar especialistas e gurus de todos os tipos. Padres que, atualmente, vendem uma “salvação” consagrada pelo dinheiro que não é somente em espécie, mas um onipotente simbólico de reconhecimento e aceitação diante de uma ordem socialmente dominante.
Cada vez que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado de seu campo de imanência, é porque há um padre por ali. – Deleuze & Guattari, O anti-édipo
Apesar de o desejo vir com a marca da falta (ver Nada falta ao desejo) na constituição do pensamento ocidental, é importante destacar que na modernidade o sujeito desejante ocupava um lugar de proibição ao gozo, enquanto no contemporâneo seu lugar é o de um dever ao gozo, e a pauta dos deveres é fornecida, principalmente, através de imagens representativas de um espetáculo do qual interagimos.
Se antes era em relação a Deus que o sujeito se tornava faltante e, portanto, culpado, hoje é em relação ao dinheiro enquanto o simbólico do gozo. Achamo-nos “modernos” demais para nos sentirmos proibidos e culpados, no entanto, nunca a culpa e a falta foram tão efetivamente inoculadas no desejo. A probabilidade de se sentir culpa diante de vidas qualificadas como boas através das imagens do espetáculo é imensa (ver As armadilhas da qualidade de vida).
Que necessidade tão própria à nossa época essa de se representar através de selfies acompanhados de enunciados pelos quais se diz que é feliz e que se vive sem se incomodar com o que o outro irá pensar?! É justamente na falta e na culpa que tais enunciados precisam ser representados de forma especular, de outro modo o desejo não tem necessidade de explicitar a um outro imaginário que o pressiona de alguma maneira, em suma, é no plano da falta que surge a necessidade de responder à interpelação das imagens de um outro bem-sucedido que media as relações na sociedade do espetáculo. O espetáculo não é meramente uma imagem, mas as relações humanas mediadas por imagens e informações que saturam a vida com representações que enunciam vidas socialmente dominantes.
A publicidade potencializada para o espetáculo promove imagens de uma vida bem-sucedida que é reconhecida e amada pelos fantasmas de um outro que nos interpela – será que serei amado? desejado? aceito? reconhecido… se não ter uma vida assim? A posição que o desejo enquanto falta ocupa em relação a esse outro defini o tamanho do buraco que rebaixa a vida diante do altar litúrgico onde as imagens de vidas bem-sucedidas são veiculadas por um marketing avassalador capaz de atravessar todos os signos do mundo.
Fantástica produção da culpa e da falta. O capitalismo se apropria dos fluxos desejantes, agencia-os conforme seus interesses e rebaixa a vida das pessoas, desqualifica e as constrange; faz minar, paulatinamente, a potência de existir. O corpo vai esvaindo-se de suas forças, de suas sensações, de seus tesões… e o pensamento tornando-se um carrasco de si nas vias da culpa por não ter agarrado uma das tantas identidades reconhecidas e disparadas, em alta velocidade, pela sociedade do espetáculo.
Diante da implacável necessidade de visibilidade através dos signos do bem-sucedido a força desejante está sempre em dívida. Tornado fraco e incapaz de efetuar a própria potência de vida, o sujeito passa a desejar o poder para perpetuar uma vida que é reconhecida pelo outro imaginário que credencia as imagens representativas do espetáculo.
O padre da antiga religião se reformou, na sociedade do espetáculo o padre é pop, é sertanejo, passa por sessões de making, tem rosto de bebê ou barba por fazer, mas é inexpressivo diante da indústria da dívida – da falta e da culpa – em escala planetária. O beatífico, ele mesmo, é só mais um funcionário da indústria do espetáculo.
Um homem branco, hétero e de feições europeias passeia com seu carro por belas paisagens. A cidade é organizada e as ruas não tem trânsito. Ele pisa no acelerador e aperta botões de um painel futurístico e potencializa sua experiência. Sua máquina desliza pela passarela asfaltada enquanto mulheres exuberantes admiram o homem sorridente no interior de sua nave, ele está na posição de quem pode escolher qualquer uma delas, é desejado, invejado, reconhecido por todos. O admirável homem agora está em uma praia tomando cerveja servida por belas mulheres, ele é o engraçado da turma, seu corpo é como o da maioria dos homens comuns, tem formas arredondadas e está longe de ser definido como as bundas alegres que o servem. Ao amanhecer uma mulher de beleza discreta está satisfeita por agradar ao pai de família e os dois filhos felizes e obedientes, uma pasta desliza sobre uma fatia de pão e cobre o dia com uma idílica cremosidade enquanto em outra cena um descolado casal de jovens dá uma mordida em um biscoito crocante e saudável capaz de fornecer a potência que precisa para ir ao trabalho, e depois à praia tomar água de coco, e depois ao bar com os amigos, e a semana só está começando.
O que não se vê nas imagens do espetáculo veiculadas pela publicidade é que todas estão nos dizendo que somos feios, mal amados, infelizes, com vidas tediosas e fracassadas -, e que também podemos – podemos – ser bem-sucedidos, desde que… não é tentador sermos cúmplices e abdicar de nossas vidas tornadas errantes para desejar vidas tão felizes? E passamos a consumir gestos, expressões, modos de se vestir e de falar, de se comportar… e ao cabo de algumas novelas ganhamos todo um regime de sensibilidades e identidades, e assim vamos nos comprometendo cada vez mais com a satisfação do desejo do outro sem nem perceber.
No repetir das horas, dos dias de um ano inteiro e no passar dos anos estamos sendo bombardeados por modos de vidas que arruínam as nossas vidas que acontecem sem ensaios, sem figurinos, sem cenários, sem trilhas sonoras, em suma, sem magia e sem mágica, sem gozo e sem potência. E na medida em que vamos sendo cúmplices dessas vidas oferecidas vamos cavando nosso próprio buraco, e sem perceber o plano de criação foi entulhado por imagens de uma vida espetacular que buscamos sem nunca alcançar, porque quanto mais buscamos as imagens do sucesso mais em dívida ficamos com o que somos e o que temos.
Em analogia ao poeta*, a vida que supomos nós não a alcançamos porque está sempre onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos. Em outras palavras, colocamos a vida que temos no buraco e a vida que deveríamos ter – veiculadas pelo espetáculo – no altar.
É verdade que o publicitário quer vender o objeto, mas o objeto por si só não é capaz de forçar o desejo, o desejo não nos arrasta em direção a um objeto, ele nos arrasta a um contexto, a um conjunto, a um cenário. O publicitário é o padre que vai trabalhar esses fluxos em direção ao objeto, mas o objeto é meramente um detalhe em um cenário criado para arrastar o sujeito em dívida. É no rombo milenar produzido no desejo, a falta, que a publicidade encontra espaço privilegiado para montar um cenário que promete tapar o buraco do ser.
O carro, a cerveja, o celular… é só o que a nossa consciência, sempre retardada em relação ao que se passou, costuma captar. O mais importante passa sutilmente, são os modos de gesticular, de falar, de sentir, de pensar, de se comportar, de amar,… que vão nos seduzindo e nos alinhando aos fluxos de desejo que interessam ao capital.
A publicidade não se reduz a um espaço dentro de uma programação, maquinando através de personagens e cenários de novelas e filmes, de apresentadores de programas de culinária e de palco, de manchetes e de jornalismo histérico. Ela vai além, é um atravessamento que percorre toda a vida. Dos espaços das cidades aos espaços do corpo e do pensamento, está na alma da religião contemporânea. O publicitário cria buracos no desejo, faz do seu espetáculo uma necessidade, entra com distrações e divertimentos enquanto vai nos entulhando de demandas na velocidade do dinheiro – a demanda do outro imaginário que nos acena dos altares do espetáculo e nos inscreve na urgência de um dever ao gozo. Como o espetáculo está em outro mundo – os mundos ideais erigidos com os signos do dinheiro – a vida é marcada com falta e culpa na urgência de um cada vez mais apto ao gozo de se sentir aceito e reconhecido como mais um integrante do espetáculo. A dívida é infinita.
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“Quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua existência e desejo.” Guy Débord, A sociedade do espetáculo
* poema Felicidade de Vicente de Carvalho
Imagem criada pelo artista Luis Quiles