Van Gogh tentou pregar o Evangelho aos mineiros das minas de carvão, uma, duas, três vezes. Van Gogh se apaixonou uma, duas ou três vezes, mas não fora correspondido. Van Gogh bateu à porta inúmeras vezes, de emprego em emprego foi sendo chutado por ser “ineficiente” ou “estranho” demais. Van Gogh que certo dia passava pela rua e levou uma mendiga com sua filha para morar com ele que nada tinha, mas dividiu o que tinha. Van Gogh, o suicidado da sociedade*, ia vivendo de resto em resto do pão que recebia. Van Gogh que tantas vezes tentou dar conta da própria vida mas sempre acabava tendo que recorrer ao irmão. Van Gogh que nada tinha doou tudo à sociedade: iluminou o mundo com cores nunca antes vistas que hoje resplandecem em suas obras cujas formas e linhas se perdem para dar vida a estados convulsivos. Van Gogh tentou tanto, tanto, tanto… só lhe restou um irmão, e que irmão! Em um dia de excesso Van Gogh corre em um campo de trigal cuja luz dourada é ameaçada por um céu com sombras que avançam prenunciando algo, o cenário se parece com o que ele havia pintado dois dias antes. Van Gogh corre excessivamente de tudo e de todos, desse mundo sem saída cujas portas ele encontrou sempre fechada, e dispara como um louco nos corvos e em si mesmo. Dispara em seu próprio coração mas erra, e volta sangrando para sua pousada onde assim permanece até ser descoberto pelo seu psiquiatra, mas o tempo só lhe permitirá dar um último cochilo, de despedida, com o irmão. “Quero ir embora“, diz Van Gogh, e parte pela madrugada. E no mundo já sem o Sol de Van Gogh, alguns meses depois, o irmão Théo também morre. De lá para cá os gestos da mesma sociedade que o matou se multiplicaram em escala global, de lá para cá nenhum outro Van Gogh surgiu. O pós-modernismo é sombrio como o último céu de Van Gogh, o pós-modernismo é iluminado apenas por luzes artificiais que imitam a felicidade, fora essa fina película de êxtase com que cobrimos esse mundo transtornado, tudo jaz sob escombros de deuses e homens que outrora felicitavam um mundo ordenado e harmônico e, posteriormente, já sem ordem e sem harmonia, mas com um céu e um fundo construídos com os delírios da razão. Uma história de tentativas e mais tentativas de capturar o intensivo em linhas e formas foi espalhando a neurose pelo mundo, habituamo-nos tanto a essa doença que chegamos ao ponto de confundí-la com a nossa própria cura. Mas de vez em quando aparece um grande homem para convulsionar nosso conforto, um grande homem cuja grande saúde nós a tomamos como a grande e perigosa loucura e então nós o matamos. Não suportamos o intensivo, já matamos e queimamos inúmeros Van Gogh´s… E cá estamos na palidez confortável do divã choramingando a falta enquanto a vida se derrama em excessos ao nosso redor. Não é por falta que a vida adoece, é por não saber como lidar com o excesso. Se fizermos a necropsia de Van Gogh e tantos outros descobriríamos em nós o próprio cadáver, cadáveres falantes e rastejantes, encolhidos e miúdos estamos de tocaia em nossos buracos porque temos medo uns dos outros e só nos permitimos nos encontrar quando vestidos de armaduras que nos ocultem daquilo que somos. Perdoe-nos, Van Gogh, nós não estávamos, e ainda não estamos como nunca estivemos abertos à vida excessiva com exceção de raros gregos que já se misturaram às pedras milenares de um Olimpo destruído. Seus raios coloridos e convulsivos eram fortes demais para a grande massa média que compõe esse mundo, por isso eles fecharam-lhe todas as portas. Seu Sol foi ofuscante demais para nós.
Imagem: Campo de Trigo com Corvos. VAN GOGH, 1890.
* Título de uma obra de ARTAUD, A.