Nossos tempos têm sido de grande insulto ao pensamento e à vida. Em tempos assim, Camus, por exemplo, em plena 2ª Guerra Mundial, publica “O Mito de Sísifo” que abre nada mais nada menos com a seguinte questão:
Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.
Em 1941, Virginia Woolf se suicida, importa pegar aqui o contexto: uma mulher genial de sensibilidade apuradíssima vivendo em uma época conturbada por uma atmosfera bélica e nazifascista. Se efetuamos uma vida a partir dos encontros com o mundo e as coisas, um mundo onde a produção do medo e do ódio aumenta produz corpos cada vez mais entristecidos e despotencializados, refletindo espaços sociais cada vez mais violentos e punitivos. Assim como as pessoas de menor renda são as que mais sofrem os efeitos de uma “crise econômica” (estado natural do capitalismo!), sofremos mais quando estamos separados de um pensamento capaz de conhecer de maneira mais adequada a causa dos próprios afetos e, ainda assim, por mais potente que seja um corpo é um corpo diante de um mundo repleto de forças despotencializadoras, a probabilidade de ter uma vida reduzida é grande (ver Por uma ética das paixões alegres). Nesse sentido, resistir já começa como uma prática que se dá diariamente, é mais uma postura, uma ética, uma relação com um certo modo de existir que recusa o vampirismo do desejo. Se falamos em resistência e revolução é antes de tudo no nível micromolecular.
A geração que não viveu a ditadura talvez nunca tenha vivido um contexto sociopolítico tão entristecedor como o que estamos vivendo. Talvez nunca tivéramos antes na história circunstâncias tão favoráveis à criação, mas também de destruição. A violência tem sido experimentada em diversas formas, tornada banalizada, comum e partilhada no dia a dia em velocidade digital, crimes a nível da barbárie são naturalizados até mesmo por aqueles que falam em nome das instituições de combate. Tudo isso faz a gente experimentar impotência, desencantos, depressão (a depressão é também uma categoria política!), destruições sutis que sufocam e podem até aniquilar a subjetividade, tornando-nos um niilista radical incapaz de experimentar a criação de sentidos e as diferenças junto à alteridade.
Talvez o amor, a beleza, a leveza devesse uma cartografia à parte nesse mundo cujo afeto primário é o medo. Ora, as forças alegradoras não desapareceram, estão por aí e nem percebemos entorpecidos que estamos, neurotizados que estamos e incapazes de se colocar em variação com as coisas e os outros ao nosso redor.
Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia. – SARAMAGO, J.
Nossos espaços são cada vez mais kafkianos, respiramos em uma atmosfera de desencantamento e o nosso tesão de existir anda em baixa. No mundo em que vivemos, quem não se confronta (diariamente?) sobre como acreditar na vida quando ela mesma parece estar sufocada pela combustão de morte, ódio e demais afetos entristecedores que compõem a atmosfera desse mundo?
Podemos juntar a questão de Camus às problematizações de Nietzsche, ele que como ninguém nos falou das forças terríveis desse mundo sem, contudo, acusá-lo ou julgá-lo – não acusar e não julgar o mundo… isso não é pouca coisa! – “Há apenas um mundo e ele é falso, cruel, contraditório, sedutor, sem sentido. (…)”. Mais especificamente, através do conceito de amor fati (ver Nietzsche – amor fati), pensado juntamente com o conceito de eterno retorno, Nietzsche leva às últimas consequências a afirmação desta vida e deste mundo.
Amar essa vida, esse mundo tal como ele é, pois a vida é o que é e, não transformar, mas buscar uma reconciliação com o real, não julgar, mas afirmar a vida e o próprio destino são questões que se passam pelo conceito de amor fati. O conceito pelo conceito não importa tanto se ele não funciona em nós, ressoando no nosso modo de viver. Sustentar o que Nietzsche propõe através desse conceito não é pouca coisa, penso que é uma grande irresponsabilidade falar de tais conceitos sem situá-los em um mundo do qual forças terríveis também fazem parte. O que Nietzsche nos propõe a pensar é algo seríssimo, algum de nós conseguiria afirmar a vida de tal maneira? Quem de nós, para dizer como Henry Miller, não é culpado pelo menos do crime de não viver plenamente essa vida?
Sem perder os horizontes desses dois grandes pensadores (Nietzsche e Camus) que, cada um à sua maneira, pensavam a vida, exaltavam os aspectos alegres e belos da vida sem desconsiderar também, necessariamente, os aspectos terríveis e destruidores, a dor e a angústia que, nas palavras de Cioran, já desintegrava a matéria e a alma muito antes da física e da psicologia e, pensando que uma filosofia que não se presta à vida não tem muita importância, podemos culminar em uma terrível questão posta por Deleuze como, possivelmente, aquilo que mais importa à filosofia:
É possível que acreditar neste mundo, nesta vida, se tenha tornado a nossa tarefa mais difícil (…)” DELEUZE & GUATTARI, O que é a filosofia