Mas tudo o que é precioso,
é tão difícil quanto raro.
SPINOZA, Ética, V42, Escólio
Vivemos em tempos onde tudo parece desmoronar. Fluxos de poder se organizam para nos (des)organizar por inteiro, possuir nossa energia, capturar nossa intensidade e nos entristecer. A tristeza é produzida em larga escala, das dizimações de povos islâmicos e africanos às destruições ambientais globais até aos nossos conflitos mais próximos que tomam proporções de uma verdadeira guerra civil que dizima populações indígenas, crianças, mulheres, negros, pobres e demais minorias. Tudo nos afeta, tudo comunica aos fluxos desejantes a angústia, o medo, a vergonha de ser homem. O capitalismo é uma máquina de roubar nossa energia, nosso tesão de viver, nossas intensidades, marcando nossos corpos com a impotência, é claro que ele oferece algo em troca, e muitos dizem sim, dizem sim à própria repressão para usufruir de pequenos prazeres e pequenos poderes. Que corpo, vampirizado pela máquina capitalista, comunicado pela tristeza global que não para de produzir afetos de medo e ódio, diariamente, consegue resistir? Para resistir é necessário intensidade, algo muito em baixa. Consumimos mantras como viva intensamente a vida e acredite em si mesmo e tomamos antidepressivos, mas tudo isso é mais das futilidades de mercado que não adiantam se não chegarmos lá no cerne do desejo, se não alinhamos práticas de combate com os nossos fluxos desejantes.
Por mais que se diga para ficar alegre, não ficamos alegres, o desejo está entorpecido, organizado de fora – com a nossa cumplicidade. É muita produção de tristeza e tiranias contra à vida, não vamos negar, mas também há as forças alegres, as forças da beleza e do amor, porém o desejo pouco maquina com forças criativas acostumado que está às cristalizações neuróticas. Escapar de tudo isso? Não é fácil ser um homem livre, falar em nome próprio, criar nossas próprias expressividades, tornar-se imperceptível, reconciliar-se com a vida, nada disso é fácil, disse Deleuze nos alertando sobre os riscos de nos tornarmos entristecidos. De antemão, não há nada neste texto que lhe dirá o que fazer para escapar, em nenhum momento iremos dizer que basta abrir as janelas e deixar o sol entrar, pensar positivo e evitar as relações (já evitamos relações em demasia, evitamos o outro em boa parte do tempo para não ter que se implicar, e quase não nos damos conta do quanto vamos nos fechando aos encontros) com as pessoas reacionárias que a felicidade irá se derramar sobre os dias, mas haverá uma necessidade de expressar algo que nasceu de um momento de vergonha diante de barbáries que foram se sucedendo nessa atmosfera kafkiana que esfumaça ao nosso redor.
Quem nunca sentiu o sabor de uma vida tomada por forças criadoras? Os aconchegos de corpos e almas que outrora se enroscaram produzindo o calor com que se enfrenta a frieza dos dias, o pensamento surgindo e brotando as delícias de uma expressividade própria, o pensamento que encontrou sua expressão na tela, no papel, no palco, no corpo, em uma maneira de existir mais alegre… Esse texto nasce da vergonha de ser homem, a vergonha de ser homem é muito concreta dizia Deleuze, nasce de reflexos da obra de Primo Levi que deveríamos todos ler para nos envergonhar de ser homem – É isto um homem? -, nasce dessa vergonha em meio aos estados de impotência e tristeza que rondam o corpo e o pensamento diante desses campos de concentração que desabam em nossas portas todos os dias, promovidos pelos aviltadores e saqueadores da vida de todos os tipos que se usam de poderes disfarçados astutamente com os signos do bem. Catástrofes se anunciam, se o otimismo não é uma saída, o pessimismo também não, não acreditamos em saídas, a vida não é uma questão a ser resolvida, mas a ser vivida, para tanto, incitamos a resistência, mantendo o pensamento e o corpo abertos à variação, pois uma vez que nossa potência se torna inteiramente privatizada por uma subjetividade capitalista tudo fica mais difícil e, a partir de alguns pensamentos que vão surgindo, ainda desorganizados, sob um horizonte cujo céu é grafado por uma questão – seríssima – colocada por Deleuze & Guattari, tentaremos encontrar intensidades por aí.