Filosofia Psicologia

Sobre a alegria: uma ética de amor à vida

Oh amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
e mais alegre!
BEETHOVEN, Ode to Joy (9ª sinfonia)

Imagem: The Joy of Life. Henri Matisse (1906)

É espantoso o quanto falamos daquilo que nos entristece e pouco falamos daquilo que nos alegra. E se a gente tirar o dever à felicidade… não sobra quase nada além de vazio e tédio. Se tivéssemos a facilidade para falar das coisas que nos alegram assim como temos para falar das coisas que nos aborrecem certamente aquilo que a gente entende por relações sociais seria dinamitado. Que força é essa, de extraordinária vitalidade e potência criadora, que irrompe em nós e… Não é em busca dessas centelhas capazes de acender o fogo da vida que um homem abdica dos confortos gregários para se enredar pelas artes, pela filosofia, por modos insólitos e andarilhos de viver?  É preciso falar da alegria.


A história tradicional do pensamento dedicou páginas e mais páginas sobre um mundo de ideais (ver Pensamento representativo, corpo, forças…), e se falou de alegria foi em algumas notas de rodapés. Fomos engordando uma consciência com fantasmas, culpas e faltas. E é aqui que chegamos a uma triste constatação, a de que a neurotização da vida é cada vez mais dominante enquanto a alegria dorme, calada, muitas vezes ao nosso alcance, por boa parte do tempo… e por vezes ela acorda, e é como mágica, e a gente sente algo pulsando dentro de nós, e o rosto vai se suavizando, o corpo se tornando bailarino, a língua se poetizando, e as moléculas se agitando em nós… e a gente sente sopros de delícia saltando pela pele, porque “o mais profundo é a pele” (Paul Valery), e é por aí que se começa a endoidecer de alegria.

Clément Rosset* diz que a forma de viver sem alegria é a neurótica, a tristeza não pode ser o oposto da alegria, esta não exclui aquela. Apesar de inúmeras as maneiras de se enredar pela neurose, nela é comum uma vida que sempre se adia pela esperança de algo que ainda não é – a felicidade?

A criança se alegra facilmente. Ela não se envergonha nem tem medo de viver. A criança cai, se machuca, fica triste… mas não faz disso um erro da vida. Mas aos poucos vai pegando uma das tantas vias da neurose e o olhar do outro passa a ser vigilante, o medo de viver vai ganhando força e a vida está prontinha para ser acusada por conta dos aspectos entristecedores que podem envolver a existência, e assim o corpo vai se fechando aos sopros vitalizantes da alegria. “O olho vê somente o que a mente está preparada para compreender” diz Bergson, e quanta feiura não se vê quando compreendemos a vida a partir de perspectivas neuróticas e paranoicas?

Ainda que tenhamos sido potencializados aos modos neurotizados de viver, nós não somos mais crianças. E agora queremos ir à contramão, porque é feio ser compassivo com a neurose, é feio demais fazer de um certo modo neurótico de viver até mesmo uma “cura”. Então é preciso falar de alegria, não porque é necessário capturá-la enquanto objeto, a alegria depende do encontro, se faz enquanto vive, é uma ética da vida, portanto, não é falar de um ponto de vista racional.

A alegria como força ética da vida escapa a toda argumentação, falar da alegria aqui é enquanto dar passagem ao pensável. Tirá-la do impensável do qual ela permanece sepultada na tradição do pensamento é abrir rachaduras na crosta neurótica que fomos ganhando.

Por que não se fala sobre a alegria? Freud, que nas ciências dá um certo corpo teórico a psiquê, não dedicou uma página à alegria! Mas não se trata de Freud. Pode se passar uma vida escolar e acadêmica inteira sem nunca falar de alegria, até mesmo em um curso de psicologia é muito provável que não se terá uma aula sobre a alegria. É espantoso o quanto falamos daquilo que nos entristece e pouco falamos daquilo que nos alegra. E se a gente tirar o dever à felicidade… não sobra quase nada além de vazio e tédio.

Se tivéssemos a facilidade para falar das coisas que nos alegram assim como temos para falar das coisas que nos aborrecem certamente aquilo que a gente entende por relações sociais seria dinamitado.
Somos capazes de tecer longas discussões baseadas em trocas de acusações e nos deliciamos com o outro que se junta a nós para falar sobre os problemas da vida e nossos dramas edipianos e nossas chatices cotidianas. Facilmente nos enturmamos com estranhos na fila do banco para reclamar sobre o país, sobre o preço do combustível, sobre o outro, sobre as dores de viver. E se tivéssemos essa mesma facilidade para enturmar com os olhares e as bocas e os jeitos que certas pessoas com que cruzamos no dia a dia nos causam calafrios de bem-estar? Se tivéssemos… se tivéssemos a facilidade para falar das coisas que nos alegram assim como temos para falar das coisas que nos aborrecem certamente aquilo que a gente entende por relações sociais seria dinamitado.

Precisamos falar de alegria…

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As forças do mundo farão de tudo para intimidar as vozes da alegria e promover modos entristecedores como formas organizadoras de vida. Que todos acusem a vida de erros e falem daquilo que entristece, mas não que se é triste. É por meio das formas entristecedoras que se pode capturar vidas em formas de anormalidade e patologia, promover políticas de controle e disciplina e deixar a cargo do poder a gestão de um bem-estar social.

Se dizemos que a alegria incomoda é porque ameaça as bases neurotizadas da sociedade. Na alegria não se conserva, se cria. O tempo da alegria é o instante. Não se economiza e nem se adia (ver Equilíbrio para ter qualidade de vida? Seja um desequilibrado), e o encontro com o mundo se dá tal como ele é. Por assim dizer, a alegria é revolucionária.

Dizer que se é triste em tempos de dever à felicidade é uma anormalidade. Nós achamos que não somos tristes porque se tem uma maneira muito moderna e sociável de estar entristecido enquanto se abre a boca e mostra os dentes brancos e alinhados em forma de sorriso, chamamos isso de felicidade.

Daí é necessário distinguir alegria de felicidade, não enquanto uma guerra entre vocábulos conceituais e nem de exclusão de um termo pelo outro, o mais fundamental é a compreensão do que se está em questão, e com isso também retiramos a alegria dos lugares banais dos quais ela é encerrada. Falar de alegria não porque gente alegre é bacana, é positiva, é saudável, porque quem é alegre não morre de câncer e tem melhor qualidade de vida. Esses tons meio de deveres costumam pertencer à felicidade que é um termo inventado pela modernidade e está ancorado enquanto projeto orientado para uma vida qualificada através de universais e consagrada para o consumo – de carros, de abridores de garrafa, de práticas de ioga, de ideias, de… O futuro é o tempo da felicidade que é algo que está por vir carregado nos braços da esperança.

A alegria é um estado de tanta vitalidade que perto dela a felicidade é uma anemia.
Se a alegria é uma força de criação a felicidade é uma força de inação que fica à espera de algo que nunca vem, e quando vem se esfarela frente à expectativa que se tinha. O vazio logo dá as caras e a produção da falta nunca cessa (ver Falta e culpa na sociedade do espetáculo).

Os inimigos da alegria são muitos, como é uma força inventiva e criadora ela não se presta à conservação e cristalização dos estratos neuróticos e paranoicos da sociedade. Já a felicidade não incomoda e desfila enquanto oferta por todos os cantos na sociedade do espetáculo, nunca se viveu tão secretamente a tristeza ao mesmo tempo em que mostrar uma vida apta a ser admirada e compartilhada abertamente nas redes socais é uma preocupação concreta. É importante que a felicidade não se efetive senão em pequenas doses, e que se faça de disponível para todos, assim se mantém o consumismo e o voluntarismo à servidão aquecidos. A alegria para o consumo seria uma insanidade, pois nela nada falta.

É preciso falar de alegria…

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.