Filosofia

Por uma palavra capaz de dançar

kandinsky
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Morra a verdade, faça-se a vida!
NIETZSCHE, F.

Desprezar o silêncio é desprezar a escuta de nós mesmos, escutar expressividades outras que não se dão pela gramaticalidade da linguagem, mas pela nossa musicalidade. No entanto, sentimos confortáveis com a consciência que é basicamente formada pela fofoca, as vozes dos outros em nós dizendo o que devemos e não devemos fazer. A palavra que dança é a palavra surgida quando fechamos as portas para essa tagarelice como necessidade de comunicação e nos sentamos confortáveis com o nosso próprio silêncio para escutar expressividades outras de vida.


A comunicação informa, a informação coage. Comunicamos mais para nos coagir uns aos outros do que para alegrar uns aos outros. Quando nasce uma palavra morre uma intensidade. Fora da lógica da comunicação podemos usar palavras para produzir intensidades, e das boas, quando a poesia é causa de uma alegria que surge na boca do estômago e contagia a alma.

A palavra pode nos fazer dançar, mas para isso é necessário que ela saia do nosso silêncio, que ela seja emitida com o corpo e não com a consciência sedenta por comunicação.

Zaratustra nos ensina que a palavra nos permite brincar com o mundo, mas não essa palavra mercadológica que é enunciada pelos poderes como meio de nos vigiar uns aos outros com a escolta da identidade, mas a palavra dançante que falamos em nome próprio, não porque é única e nós a inventamos, mas porque é falada na nossa ritmicidade desejante.

A vida é mutável a todo instante, nossos sentimentos e emoções, quanto mais permeáveis aos fluxos que compõem modos de vida alegradores, mais serão capazes de conjugar forças criativas, mas quanto mais tentamos fixá-los nos sentidos da comunicação mais rígidos vamos nos tornando, pois a palavra carrega consigo um engessamento do movimento vital, daí encontrar uma linguagem que nos permita dançar, nos libertar ao invés de nos atolar.

Quando nos sentimos confortáveis com o silêncio que a comunicação chama de vazio, podemos encontrar palavras dançarinas, o silêncio não é vazio, é matéria prenhe e disforme, o silêncio pode ter vida a ser descoberta – escuta! Não é o corpo que tem que servir à palavra, mas a palavra que deve servir ao corpo, e se servir, se não servir é bom jogar fora, palavra que não serve quando acumulada vira agente de coerção interno que diz o que devemos ou não devemos fazer, vira voz de gente depreciando as direções que tomamos. Podemos desenvolver um exército inteiro dizendo em nós o que devemos e o que não devemos se a gente não souber manejar as palavras. Recusá-las? Negá-las? Não estamos nessa condição, tudo em nós fala, o que se pode é um pouco de manejo para não nos reduzir à linguagem palavratória e suas tramas.

É preciso aproximar o corpo e o pensamento para criar sentidos, quanto mais próximos dessa criação menos prisioneiros ficamos de uma vida determinada pela consciência que tagarela vozes para impedir que entremos em contato com o silêncio, a consciência tem medo que saiamos do silêncio com uma tocha capaz de incendiar as cordas que nos amarram uns aos outros.

A bem da verdade, a consciência é formada por fofoca, basicamente fofoca. Não suportar o silêncio é o mesmo que não suportar escutar a nós mesmos e preferir escutar a conversa dos outros, fofoqueiros que somos! A fofoca carrega sempre um segredinho, de segredinho em segredinho a gente vai ficando endividado com o nosso desejo.

A palavra dançarina tem uma gramática corporal, ela surge a partir dos sabores que se dão aos encontros com o mundo. Como eu gosto desses teus olhos de coruja! – Isso é uma dança com as palavras da qual espero que o outro apreenda enquanto expressividade em movimento, assim escutamos uma musicalidade na nossa relação, quando não apreendemos esse movimento a gente se agarra aos significados que já estão prontos, daí surge o barulho, o barulho nos remete a algo que não entendemos bem e depende de uma interpretação, interpretar é terceirizar os sentidos, ficamos sujeitos às acusações e julgamentos diante do dito e o do não dito.

A comunicação é o que permitiu a nossa sobrevivência enquanto seres humanos gregários, ela teceu toda cultura por meio de suas relações com uma linguagem identitária e lógica, assim predominou a palavra enquanto significado a ser decifrado, daí separamos o corpo da palavra. Palavra que é separada das forças e dos afetos produz uma contra-natureza em nós – a má consciência.

Criar ou possibilitar novas modalidades de comunicação, forçar o pensamento a se impregnar com sensações e afetações é abrir as cortinas à beleza da vida que nos assalta lá onde deixamos de fixar demasiadamente os fluxos nas significações da comunicação que informa e vigia uns aos outros.

Nosso corpo pode falar e escutar coisas das quais ainda nem imaginamos, experimente tirar uns cochilos tranquilos no silêncio, pode se sair cantando de lá, e às vezes, também, assustados.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.