Filosofia

Pensamento representativo, corpo, forças e uma ciência brincalhona

O corpo e as forças

As representações estão fora da vida vivida, desconsideram o corpo, os afetos e as paixões na produção do pensamento, ou até consideram, mas para desprezar e dizer que os nossos sentidos nos levam a um conhecimento aparente, também conhecido como o mundo do falso.

O corpo, a partir de Nietzsche, é constituído por um complexo de relações entre diferentes forças que interagem a partir dos encontros dos corpos com outros corpos. Em uma tipologia das forças consideramos as forças ativas que criam e desenvolvem novas formas de viver e as forças reativas que visam a conservação e a adaptação. Não existe corpo que seja constituído só por um tipo de forças, é na relação ativo-reativo – ação e re-ação, afirmação e negação, criação e conservação – que pensamos o que predomina em uma vida.

Corpo aqui não se reduz à matéria. Ideias, lembranças, a música, o vento… tudo que nos afeta se constitui como um corpo e interage com as forças que nos compõem. Não só o “objeto” como também o “sujeito” são corpos resultantes da interação de forças, de tal modo o conhecimento é sempre avaliação de alguma coisa a partir de uma perspectiva que se compõem com as próprias forças.

Nesse sentido, toda busca por conhecimento não deve menosprezar esse corpo “fisiológico” constituído por forças cuja potência é influenciada a todo instante a partir dos encontros com o mundo (ver Por uma ética das paixões alegres) – a alimentação, o clima, a iluminação, a paisagem, um passeio, um livro, enfim, todo encontro com outros corpos relaciona-se com o pensamento que já é um produto do choque entre as forças. Isso é muito concreto, uma boa afetação é capaz de injetar alguma poesia nos modos de viver. E até os maus encontros, nessa perspectiva, se bem cultivados, podem servir, pois dizem muito sobre nossas experimentações e aquilo que nos apequena.

Esse conceito de corpo a partir de Nietzsche, aqui de modo muito simplificado, é para dizer que o corpo tem que ser privilegiado – e não menosprezado – em se tratando de pensar e conhecer. Nossos estados nos levam a percepções e perspectivas diferentes.

O mundo que nos é durante a alegria já não é aquele que é durante a tristeza, no entanto, a história do pensamento ocidental desprezou o corpo, as paixões e os afetos e privilegiou uma razão como fábrica de captura da vida para poder conservá-la e reproduzi-la sob o primado da identidade. À medida em que nossos estados mudam as percepções também mudam, e com isso os pensamentos e as ações.

Se estamos sujeitos a uma pluralidade de forças nós nunca somos afetados da mesma maneira, a vida é singular e múltipla. Nesse sentido, quanto mais atolados estivermos no plano representativo do mundo mais nosso corpo sentirá os efeitos de uma vida esquartejada entre aquilo que somos e aquilo em que somos convocados a atender através das demandas morais valoradas no plano da representação.

O conhecimento representativo é aquele que respalda maneiras de viver, o que tem implicações profundamente éticas na vida do indivíduo. Quantas vidas incríveis não se arrastam porque não encontram respaldos? Não quer dizer que não tenham potência criativa, às vezes as forças criativas estão sufocadas pelas forças reativas, não se pode desconsiderar as forças do mundo. Afirmar uma vida não é um ato de vontade, é um processo difícil e constante, exige paciência e sabedoria para cultivar bons encontros. Baudelaire, sabendo-se melancólico, suscetível a sentir o peso de um tempo esmagador, sustentou uma potência criadora a partir da poesia, para isso ele embriagava-se* à sua maneira.

Uma ciência brincalhona

E depois disso queremos perguntar. Por que a ciência não pode ser brincalhona, inserir, de forma autêntica, o corpo e os afetos junto aos livros e aos laboratórios? Por que a ideia verdadeira quer se apresentar na austeridade de um corpo sepultado com terno cinza e gravata vermelha? Quantas teses e monografias tristes já não serviram para obter um título e hoje só servem para alimentar multidões de traças? Essa história do predomínio da ideia verdadeira em detrimento do corpo é também a história da tristeza como afeto predominante e a história da união dos fracos que fez de um modo gregário de vida o predomínio das forças de conservação. São os padres do conhecimento que precisam pregar suas representações decantadas de afetos e paixões que ajudaram a criar essa mística de que o pensamento é a austeridade de faculdades mentais voluntárias que trabalham para descobrir algo que o mundo teria a nos revelar. Não há nada a ser revelado, mas com o mundo, podemos brincar de conhecer.

O intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura e rangente, difícil de pôr em movimento; chamam de “levar a coisa a sério”, quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina – oh, como lhes deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica “séria”! E “onde há riso e alegria, o pensamento nada vale”: – assim diz o preconceito dessa besta séria contra toda “gaia ciência”. – Muito bem! Mostremos que é um preconceito!” Nietzsche, A Gaia Ciência – aforismo 327

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* Embriagai-vos! 
(…) Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão, é preciso que vos embriagueis sem descanso.

Mas, com quê? Com vinho, poesia, virtude. Como quiserdes. Mas, embriagai-vos. (…)
C. BAUDELAIRE

 

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.