Filosofia Psicologia

Falta e culpa na sociedade do espetáculo – o publicitário como padre

Sociedade do Espetáculo
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Deus é dinheiro na religião feroz do capital. Na sociedade do espetáculo o antigo padre se reformou, é pop, é sertanejo… mas inexpressivo diante do padre por excelência, o publicitário que oferece a interpretação dos signos do dinheiro, credenciando vidas capazes de obter reconhecimento e aceitação diante de um outro imaginário. Decifrar a vontade do dinheiro é alcançar a via-crúxis de um gozo que promete cada vez mais, e mais, e mais, e… continuamos em dívida porque a vida que temos é sempre fracassada e infeliz diante dos desígnios da sociedade do espetáculo que não para de produzir vidas inalcançáveis. Seguindo por esse trajeto o rebaixamento da vida na falta e na culpa também é cada vez mais, e mais, e mais… dívida infinita do desejo!


O espetáculo é o sol que nunca se põe
no império da passividade moderna.
Guy Débord (A sociedade do espetáculo)

Os clérigos, durante muito tempo, formaram uma classe social a parte dada sua importância de intermediação entre o sujeito e uma ordem (social) moral do mundo. A falta e a culpa eram produzidas – e geridas -, sobretudo, através do clero enquanto legítimo porta-voz das leis divinas que norteavam as concepções e os modos de vida. Em outros termos, a figura do padre tinha importância fundamental na produção de um modo de vida faltante e as penitências para intermediar o sujeito e a culpa.

Seguindo o pensamento de Walter Benjamin a partir das palavras de Agamben, o capitalismo é uma religião feroz, celebra o culto ininterrupto do trabalho cujo objeto é o dinheiro, deus se tornou dinheiro e o banco assumiu o lugar das igrejas. Os padres são todos aqueles que manipulam e administram o desejo, sendo o publicitário a serviço do dinheiro (deus) o mais nobre de um “clero” que pode comportar especialistas e gurus de todos os tipos. Padres que, atualmente, vendem uma “salvação” consagrada pelo dinheiro que não é somente em espécie, mas um onipotente simbólico de reconhecimento e aceitação diante de uma ordem socialmente dominante.

Cada vez que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado de seu campo de imanência, é porque há um padre por ali. – Deleuze & Guattari, O anti-édipo

Apesar de o desejo vir com a marca da falta (ver Nada falta ao desejo) na constituição do pensamento ocidental, é importante destacar que na modernidade o sujeito desejante ocupava um lugar de proibição ao gozo, enquanto no contemporâneo seu lugar é o de um dever ao gozo, e a pauta dos deveres é fornecida, principalmente, através de imagens representativas de um espetáculo do qual interagimos.

Se antes era em relação a Deus que o sujeito se tornava faltante e, portanto, culpado, hoje é em relação ao dinheiro enquanto o simbólico do gozo. Achamo-nos “modernos” demais para nos sentirmos proibidos e culpados, no entanto, nunca a culpa e a falta foram tão efetivamente inoculadas no desejo. A probabilidade de se sentir culpa diante de vidas qualificadas como boas através das imagens do espetáculo é imensa (ver As armadilhas da qualidade de vida).

A indústria do espetáculo não para de produzir imagens de vidas inalcançáveis.
Sentimo-nos culpados por não ter uma boa formação, culpados por não ter um grande amor, culpados por não ter um amante, culpados por não ter um carro de luxo, culpados por termos um corpo que nunca se iguala aos do outdoor, culpados por não viajar à Europa, culpados por nossas vidas não ser como as de novela, culpados por termos um emprego medíocre enquanto o outro é empreendedor, culpados, enfim, por não conseguir gozar das inúmeras ofertas de prazer de uma religião global que tem o padre-publicitário um exímio fornecedor de vidas inalcançáveis através de suas espetaculares interpretações do onipotente dinheiro. Sua principal função: amaldiçoar o desejo com o veneno da culpa.

Que necessidade tão própria à nossa época essa de se representar através de selfies acompanhados de enunciados pelos quais se diz que é feliz e que se vive sem se incomodar com o que o outro irá pensar?! É justamente na falta e na culpa que tais enunciados precisam ser representados de forma especular, de outro modo o desejo não tem necessidade de explicitar a um outro imaginário que o pressiona de alguma maneira, em suma, é no plano da falta que surge a necessidade de responder à interpelação das imagens de um outro bem-sucedido que media as relações na sociedade do espetáculo. O espetáculo não é meramente uma imagem, mas as relações humanas mediadas por imagens e informações que saturam a vida com representações que enunciam vidas socialmente dominantes.

A publicidade potencializada para o espetáculo promove imagens de uma vida bem-sucedida que é reconhecida e amada pelos fantasmas de um outro que nos interpela – será que serei amado? desejado? aceito? reconhecido… se não ter uma vida assim? A posição que o desejo enquanto falta ocupa em relação a esse outro defini o tamanho do buraco que rebaixa a vida diante do altar litúrgico onde as imagens de vidas bem-sucedidas são veiculadas por um marketing avassalador capaz de atravessar todos os signos do mundo.

Fantástica produção da culpa e da falta. O capitalismo se apropria dos fluxos desejantes, agencia-os conforme seus interesses e rebaixa a vida das pessoas, desqualifica e as constrange; faz minar, paulatinamente, a potência de existir. O corpo vai esvaindo-se de suas forças, de suas sensações, de seus tesões… e o pensamento tornando-se um carrasco de si nas vias da culpa por não ter agarrado uma das tantas identidades reconhecidas e disparadas, em alta velocidade, pela sociedade do espetáculo.

Diante da implacável necessidade de visibilidade através dos signos do bem-sucedido a força desejante está sempre em dívida. Tornado fraco e incapaz de efetuar a própria potência de vida, o sujeito passa a desejar o poder para perpetuar uma vida que é reconhecida pelo outro imaginário que credencia as imagens representativas do espetáculo.

Hoje é o publicitário, por excelência, que ocupa o lugar do padre oferecendo a interpretação dos signos do dinheiro, decifrar a vontade do dinheiro é alcançar a via-crúcis de um gozo que promete ser cada vez mais, e mais, e mais, e… e continuamos em dívida porque a vida que temos é sempre fracassada diante dos desígnios da sociedade do espetáculo – dívida infinita!
O padre moderno oferecia a via da salvação celestial onde o gozo seria pleno. Mas o homem estava sempre em dívida para conquistar um lugar no céu, sua carne era fraca aos desígnios do espírito cuja interpretação cabia ao padre. Hoje é o publicitário, por excelência, que ocupa o lugar do padre oferecendo a interpretação dos signos do dinheiro, decifrar a vontade do dinheiro é alcançar a via-crúcis de um gozo que promete ser cada vez mais, e mais, e mais, e… e continuamos em dívida porque a vida que temos é sempre fracassada diante dos desígnios da sociedade do espetáculo – dívida infinita!

O padre da antiga religião se reformou, na sociedade do espetáculo o padre é pop, é sertanejo, passa por sessões de making, tem rosto de bebê ou barba por fazer, mas é inexpressivo diante da indústria da dívida – da falta e da culpa – em escala planetária. O beatífico, ele mesmo, é só mais um funcionário da indústria do espetáculo.

Um homem branco, hétero e de feições europeias passeia com seu carro por belas paisagens. A cidade é organizada e as ruas não tem trânsito. Ele pisa no acelerador e aperta botões de um painel futurístico e potencializa sua experiência. Sua máquina desliza pela passarela asfaltada enquanto mulheres exuberantes admiram o homem sorridente no interior de sua nave, ele está na posição de quem pode escolher qualquer uma delas, é desejado, invejado, reconhecido por todos. O admirável homem agora está em uma praia tomando cerveja servida por belas mulheres, ele é o engraçado da turma, seu corpo é como o da maioria dos homens comuns, tem formas arredondadas e está longe de ser definido como as bundas alegres que o servem. Ao amanhecer uma mulher de beleza discreta está satisfeita por agradar ao pai de família e os dois filhos felizes e obedientes, uma pasta desliza sobre uma fatia de pão e cobre o dia com uma idílica cremosidade enquanto em outra cena um descolado casal de jovens dá uma mordida em um biscoito crocante e saudável capaz de fornecer a potência que precisa para ir ao trabalho, e depois à praia tomar água de coco, e depois ao bar com os amigos, e a semana só está começando.

O que não se vê nas imagens do espetáculo veiculadas pela publicidade é que todas estão nos dizendo que somos feios, mal amados, infelizes, com vidas tediosas e fracassadas -, e que também podemos – podemos – ser bem-sucedidos, desde que… não é tentador sermos cúmplices e abdicar de nossas vidas tornadas errantes para desejar vidas tão felizes? E passamos a consumir gestos, expressões, modos de se vestir e de falar, de se comportar… e ao cabo de algumas novelas ganhamos todo um regime de sensibilidades e identidades, e assim vamos nos comprometendo cada vez mais com a satisfação do desejo do outro sem nem perceber.

No repetir das horas, dos dias de um ano inteiro e no passar dos anos estamos sendo bombardeados por modos de vidas que arruínam as nossas vidas que acontecem sem ensaios, sem figurinos, sem cenários, sem trilhas sonoras, em suma, sem magia e sem mágica, sem gozo e sem potência. E na medida em que vamos sendo cúmplices dessas vidas oferecidas vamos cavando nosso próprio buraco, e sem perceber o plano de criação foi entulhado por imagens de uma vida espetacular que buscamos sem nunca alcançar, porque quanto mais buscamos as imagens do sucesso mais em dívida ficamos com o que somos e o que temos.

Em analogia ao poeta*, a vida que supomos nós não a alcançamos porque está sempre onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos. Em outras palavras, colocamos a vida que temos no buraco e a vida que deveríamos ter – veiculadas pelo espetáculo – no altar.

É verdade que o publicitário quer vender o objeto, mas o objeto por si só não é capaz de forçar o desejo, o desejo não nos arrasta em direção a um objeto, ele nos arrasta a um contexto, a um conjunto, a um cenário. O publicitário é o padre que vai trabalhar esses fluxos em direção ao objeto, mas o objeto é meramente um detalhe em um cenário criado para arrastar o sujeito em dívida. É no rombo milenar produzido no desejo, a falta, que a publicidade encontra espaço privilegiado para montar um cenário que promete tapar o buraco do ser.

O carro, a cerveja, o celular… é só o que a nossa consciência, sempre retardada em relação ao que se passou, costuma captar. O mais importante passa sutilmente, são os modos de gesticular, de falar, de sentir, de pensar, de se comportar, de amar,… que vão nos seduzindo e nos alinhando aos fluxos de desejo que interessam ao capital.

A publicidade não se reduz a um espaço dentro de uma programação, maquinando através de personagens e cenários de novelas e filmes, de apresentadores de programas de culinária e de palco, de manchetes e  de jornalismo histérico. Ela vai além, é um atravessamento que percorre toda a vida. Dos espaços das cidades aos espaços do corpo e do pensamento, está na alma da religião contemporânea. O publicitário cria buracos no desejo, faz do seu espetáculo uma necessidade, entra com distrações e divertimentos enquanto vai nos entulhando de demandas na velocidade do dinheiro – a demanda do outro imaginário que nos acena dos altares do espetáculo e nos inscreve na urgência de um dever ao gozo. Como o espetáculo está em outro mundo – os mundos ideais erigidos com os signos do dinheiro – a vida é marcada com falta e culpa na urgência de um cada vez mais apto ao gozo de se sentir aceito e reconhecido como mais um integrante do espetáculo. A dívida é infinita.

 

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“Quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua existência e desejo.” Guy Débord, A sociedade do espetáculo


* poema Felicidade de Vicente de Carvalho

Imagem criada pelo artista Luis Quiles

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.