Literatura

Em busca das epifanias com Clarice Lispector

Clarice Lispector e Epifania
Adriel Dutra
Escrito por Adriel Dutra

Como falar sobre Clarice Lispector (CL)? A Clarice que se descreve como “caótica, intensa, inteiramente fora da realidade da vida”, Clarice que escapa o tempo inteiro, cuja maioria de seus escritos é sem enredo e sem sentido, porém, pulsantes de intensidades que podem produzir colapsos existenciais através dos espantos e das estranhezas singulares que já são quase imperceptíveis aos nossos sentidos entulhados com a matéria morta de uma ordem moral do mundo.

Quando me perguntam sobre o que Clarice escreve só posso dizer: vá lá e sinta com teu próprio corpo, não há nada a dizer sobre as histórias sem sentido da Clarice. Que se pode dizer daquilo que não se consegue “pegar” pois escorre como água das mãos? Contudo, algo é certo de se dizer: Clarice Lispector não é para amadores e não tem nada de “fofa – como costumam caracterizá-la por aí! Sua escrita é de uma violência cruel, porém, inocente, a morte está sempre à espreita, nascer e morrer, a solidão é inexorável, a linguagem um inevitável que nunca acerta o âmago – “ninguém pode entrar no coração de ninguém”, o amor é perigoso, o mundo é perigoso, porém, bom, viver é bom…

A vida é um soco no estômago. (A hora da estrela)

*

Era uma vez uma galinha, a galinha corre para não virar almoço de domingo, a galinha é capturada, a galinha bota um ovo e se safa da morte mas outro dia ela morre e os dias continuam e ponto final. Isso é o que pode se dizer do enredo do conto Uma galinha, e assim é a maioria dos escritos de CL. Que se tem a dizer? Nada a dizer, mas tudo a sentir. Quando damo-nos conta de uma vida enquanto produção infinita de corpos finitos em constante movimentação deixamos de ser para devir, e os devires são túrgidos de intensidades. Se falamos em intensificar a vida não é para fazer coro à falsa intensificação oferecida pelo capital através da compra de experiências já formatadas, é para nos lançar no “escuro”, no âmago das coisas em estado vivo, e é desse lugar que CL produz a sua escrita… diabólica.

CL interpretada pela atriz Rita Êlmor em peça teatral

Clarice Lispector interpretada pela atriz Rita Êlmor em peça teatral

Em sua maioria, as personagens de CL são descritas de forma genérica, uma velha, uma criança, uma galinha, um ovo… pode ser a vida de qualquer um de nós se passando em seus escritos. O enredo é praticamente ausente, ele não importa, pois o que se passa está no entre, nos espantos e estranhamentos que se passam durante a leitura, queremos o epifânico. A linguagem, talvez, seja ela mesma uma “personagem” à parte com que CL se debate para fazê-la brotar junto do próprio instante – imprevisível e escorregadio – da vida. “Meu tema é o instante? meu tema de vida.” (Água Viva)

Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas. (A paixão segundo G. H.)

Entrelaçamo-nos com os outros corpos na natureza, de repente uma composição vai surgindo, sentimos as moléculas da vida se agitando e vibrando em nós e o corpo parece querer gritar sensações e percepções deliciosamente espantosas, estamos prestes a viver instantes epifânicos. E o que se pode dizer desse ponto mais delicioso da vida cuja gramática nos foge, beleza? Para alguns dói não poder comunicar a beleza, Clarice sabe que dói, dói e é bom, uma dorzinha alegre, por assim dizer.

Aqueles que prezam por fazer da própria vida uma criação querem entrar nessas turbulências epifânicas e sair de lá com alguma expressividade própria. Clarice com sua escrita bailarina, Van Gogh com seu pincel iluminado, Corradini com seu cinzel extraindo a beleza do mármore e todos nós, ainda que não doamos uma obra ao mundo, já não somos mais os mesmos, exprimimos a potência desse maravilhamento no nosso próprio corpo. Se lemos Clarice não é porque queremos aprender histórias, as histórias sem sentido da Clarice, mas porque queremos entrar em contato com o caldo primitivo da vida prestes a devir intensidades, antes que ele seja apalavrado e catalogado, engessado (ou quase) no ser.

Mas quero ter a liberdade de dizer coisas sem nexo como profunda forma de te atingir. (Água viva)

CL é para leitores em devir. Aqueles muito fixados em sentidos e enredos, leitores que acham que as coisas têm que começar do um e seguir com dois, três e assim por diante, os que precisam entender um parágrafo para poder seguir adiante vão ficar, literalmente, boiando. A escrita de CL é uma dança – muitas vezes em turbulência – que se segue sem se importar muito com o sentido. Qual o sentido da vida? Não tem a menor importância, mas sabemos que viver é um processo que vai doer, e não será fácil, contudo, inocente. CL fala das coisas do lugar de um não-saber, tentando pegá-las em estado nu para nos mostrar – veja, veja como isso é extraordinário e não enxergamos, o ovo não é somente um ovo! – Porque coberto com o véu da linguagem a gente já não se espanta nem se estranha, fechamo-nos ao extraordinário e, portanto, às possibilidades de sentir epifanias. Como falar das coisas sem usar linguagem? – questão lispectoriana por excelência, é daí que a eterna novidade das coisas pode nos atingir em cheio.

Viver é dá ordem dos excessos – nada falta! -, e é dos excessos que CL fala. Nós não o percebemos e não é por menos. Em um mundo onde o nome age, sobretudo, como uma forma de captura da intensidade que transborda, quase nada nos causa mais espanto, perplexidade e estranhamento, portanto, ficamos empobrecidos de momentos epifânicos. O véu da linguagem empalha o devir no ser, e se não conseguimos usá-la como uma maneira de expressão limitada, submetemo-nos a um mundo em estado morto. Construímos diques e barreiras engenhosas e astutas para conter o excessivo nas formas e identidades. Temerosos ao excesso, vamos acomodando a vida no estático e não conseguimos perceber que os corpos e os pensamentos estão o tempo todo se afetando e sendo afetados através de relações que ora nos compõem e ora nos decompõem, assim, colamos o mundo em uma grande imagem, a ordem moral do mundo, diria Nietzsche.

Recuperar a capacidade de sermos pegos pelo estranhamento requer trabalhar em processos que provoquem rachaduras nas camadas, formadas historicamente, com coisas e palavras, os códigos que dão a tudo um mesmo sentido dominante. Esses dispositivos quando na função de controlar e homogeneizar, essas “máquinas que fazem ver e falar”, dirá Deleuze, impedem movimentos criadores. Não que iremos nos desfazer totalmente dessas camadas ou encontrar algo nas profundezas, as rupturas aqui são para que variações possam circular e possibilitar modos outros de sentir, perceber e dizer, enfim, inventar outros modos de viver.

Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo … (conto “Os desastres de sofia”)

Daí que viver dói e sangra, o dia-a-dia que Clarice nos fala está sangrando e, ao mesmo tempo, esse nascimento é uma novidade. Pode ser diabólico, mas é inocente, pode ser doloroso, mas é da vida, pode ser terrivelmente trágico, e CL é trágica, mas é também no trágico que a epifania encontra seu solo fértil.

Clarice na adolescência

Clarice nunca foi de desperdiçar sorrisos

Os raios de sol penetrando nossa pele pela manhã já deveria ser o suficiente para nos fazer delirar se não fosse nossa engenharia infindável de formatação dos excessos – Ah, é só o sol. Ah, é só o mundo. Ah, é só a vida… Nos excessos a morte está sempre à espreita, precisamos contê-lo, mas não estancá-lo nos colocando como senhores de si diante da produção da vida. O transbordante que se passa nas histórias “simples” de CL nunca está separado de seus aspectos destrutivos. Viver é um processo doloroso, lento e sangrento, o mundo é cruel e terrível, mas também carrega a gratuidade de existir, portanto, não há porque acusar e julgar a vida.

Dor é vida exacerbada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. É o espreguiçamento amplo até onde pode se esticar. (Água viva.)

Amar porque quando amo me sinto bem e nada espero em troca, amor sem finalidade. Tomar uma xícara de café porque gosto do sabor e a sensação do líquido quente me aquecendo. Olhar demoradamente quem amo porque isso me traz aconchego e fico contente. E isso é tudo, basta, não há nenhuma finalidade a ser atingida. O entendimento sobre a vida não passa de palha seca e estofo com que enchemos nossos pensamentos, diria Clarice para Spinoza. Clarice que não dava a mínima para filósofos e cientistas e toda gente importante da história do pensamento.

Eu não tenho nenhuma missão: vivo porque nasci. (A hora da estrela)

Veja lá um cão descendo solitário a ladeira abaixo, seu dorso lânguido e fino, seco e ainda assim balança de lá e de cá, que se passa nessa cena? Absolutamente nada mais que um cão, um vira-lata, um animal abandonado. Quem irá delirar ou entrar em transe ou sentir o absurdo da existência em uma cena dessas? Mas de repente os céus e a terra se reviram e o homem funde-se à imagem do cão e tudo se transborda em excessos que não podem ser contidos pela linguagem, somos tomados por um sentimento fora da órbita dos significantes. Enfim, a epifania, um dos aspectos centrais na obra de CL. Esse termo, que vem desde os gregos e com o cristianismo acabou por assumir um sentido mais religioso, diz-se de um estado de maravilhamento a partir de uma revelação do divino. E se pudéssemos sentir o estado de maravilhamento neste mundo e nesta vida que nós temos aqui e agora?

Refletindo um pouco, cheguei à ligeiramente assustadora certeza de que os pensamentos são tão sobrenaturais como uma história passada depois da morte. Simplesmente descobri de súbito que pensar não é natural. Depois refleti um pouco mais e descobri que não tenho um dia-a dia. É uma vida-a-vida. E que a vida é sobrenatural. (A vida sobrenatural in Aprendendo a viver)

É bem provável que estados de maravilhamento se rompam em nós diante de situações consagradas na sociedade como significativas, o nascimento de um filho, a formação na profissão desejada depois de anos de estudos, um casamento, … mas e sentir esses estados vendo uma galinha, um ovo, uma velha limpando a casa, sentindo o silêncio que não sabe o que dizer quando estamos diante de alguém que gostamos? Não é fácil extrair beleza de um mundo onde tudo parece ser uma questão de encaixe entre utilidades e finalidades. O espanto e o estranhamento são condições fundamentais para que possamos extrair beleza das coisas, extrair beleza de uma vida cotidiana é uma necessidade para as vidas inventivas não morrerem em vida.

Levantamos e preparamos o café, usamos o banheiro, … estamos no trabalho, estamos em casa, e assim segunda e terça e todos os dias e os fins de semana e toda a nossa vida é soterrada pela gravidade do hábito. CL é aquela que vem e dinamita toda a sepultura habitual do mundo e o coloca em estado de efervescência. Um gato, uma criança, uma velha, um lugar e tempo comum começam a esgarçar as teias identitárias e o excesso transborda, viajamos pelas moléculas desses corpos, percebemos o quanto afetamos e somos afetados. A epifania, dizemos, é tudo quando se busca fazer da vida uma obra de arte. CL não nega o pensamento, a linguagem, o entendimento das coisas, nós precisamos de tudo isso para viver, mas o que ela busca é a anterioridade a tudo isso que não deve ser obscurecida com os penduricalhos da nossa razão, a vida em estado intensivo puro. A epifania é deste mundo e desta vida, abundante e em estado de gratuidade, para isso precisamos conquistar a capacidade de mergulhar no âmago das coisas em estado de devir.

Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas nunca o ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. LISPECTOR, C. Água viva

O entendimento que CL nos fala é da ordem do não-saber, um entendimento capaz de fazer amor com as coisas para conhecê-las, um entendimento que consegue estar presente junto à vida sem acusá-la. Se o não-saber assume lugar privilegiado na escrita de Clarice é porque, por mais que saibamos, a vida e o viver sempre ultrapassam o entendimento. Viver já é extraordinário em ato, por que é que temos que ficar esperando por anjos tocando trombetas descerem dos céus?

Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres)

Encontramos Spinoza nos escritos de CL ainda que ela, certamente, não o leu: o mundo em estado de nascimento é o mundo do qual afetamos e somos afetados, daí nada mais É e tudo ESTÁ, velocidade e movimento, eterna produção da vida. Até no silêncio há partículas em excesso capazes de vibrar de algum modo e de repente produzir afetos espantosos em nós. Eis aí um mundo em perpétuo estado de partenogênese.

Entrevista com Clarice Lispector

Clique para assistir a entrevista de Clarice à TV Cultura, pouco antes da sua morte, em 1977.

O que os nossos tempos de hiperconsumo e antipolítica, de corpos e mentes reduzidos a trapos fazem é entupir nossos regimes de sensibilidade com sentidos e percepções que nos estimulam a acumular e conservar capital e vida. Temos olhos, mas eles só enxergam aquilo que nos ensinaram a ver. Temos orelhas, mas elas só escutam aquilo que nos disseram para escutar. E assim, os nossos órgãos e sentidos vão sendo capturados e direcionados para as imagens de uma dada ordem moral do mundo. O que o homem médio dos grandes centros consegue perceber senão o ronco dos motores, os signos e os símbolos ostentatórios, as telas de alta definição, os lugares onde se compra e se come e se trabalha? Estão todos encrustados com a graxa civilizatória de um capitalismo produtor de subjetividades cada vez mais impotentes.

CL nos ajuda a recuperar nossa capacidade de enxergar o mundo novamente, e este mundo é puro devir, ainda que ele seja terrível e cruel, é captando a vida em movimento a partir dos nossos sentidos que podemos descortinar a beleza do mundo.

Quando a realidade nos espanta, quando rachamos os muros da linguagem e dos hábitos e dos sentidos já cristalizados, abrimos espaços para que a matéria intensiva da vida se derrame em nós. Ler CL se faz fundamental em um mundo transtornado como o nosso, onde a feiura, as acusações, o ódio e o niilismo esmagam o devir diariamente. Em um mundo onde a falta costura os corpos de fora a fora, recuperar o excesso é fundamental, mas saibamos que vida em excesso dói, sangra, pode ser terrível, mas também tem suas epifanias, cabe a cada um de nós, a partir da matéria excessiva – e intensiva – da vida criar formas próprias de expressividades que nos sejam mais alegradoras.

Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio. (A paixão segundo G. H.)

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.