Filosofia

Acreditar neste mundo e nesta vida onde os idiotas fazem parte

Um pouco de possível, senão eu sufoco¹

O cenário pode aterrorizar, mas isso não quer dizer que estamos rendidos à impotência. A potência é inerente à própria vida, nós é que fomos poucos estimulados à potência da vida. Até em Auschwitz as forças criadoras da beleza e do amor não deixaram de estar presentes, havia aqueles que iam à sepultura com uma melodia alegre nos lábios, diz Viktor Frankl em sua bela obra autobiográfica – Um psicólogo no campo de concentração. Saibamos que fomos poucos estimulados às flores e muito estimulados ao canhão, nós que temos tanta facilidade para julgar e uma dificuldade imensa de dizer o quanto uma pessoa nos faz bem, subjetivados assim parece que a criação de outros modos de vida nos parece ser tão impossível a ponto de preferir nos autoflagelar e desejar a própria repressão.

Tomar conhecimento de que estamos desestimulados à potência criativa, e não que o poder é poderoso demais diante de nós, e perceber as nossas próprias cumplicidades com os opressores pode nos ajudar a desfazer muitas das amarras diante desse mundo em que “tudo racha e estala” para criar sentidos em nome próprio, acreditar neste mundo e nesta vida passa por um resgate da potência enquanto intrínseca à vida e uma superação das leis do negativo que inauguram a força desejante na nossa formação subjetiva (ver Nada falta ao desejo).

Lembremo-nos, o poder não nos coopta porque ele é poderoso demais. Para que o poder possa nos dominar ele primeiro precisa nos entristecer, penetrar pelos poros, invadir o corpo e o pensamento para oprimi-los, nos separar da potência de criar e, consequentemente, nos entristecer, daí quedamos em tristezas e, impotentes, passamos a odiar, acreditando, muitas vezes, que o mundo, a vida, os outros são causas de nosso mal-estar. E mais uma vez: é preciso da nossa cumplicidade para que o poder possa operar em nós.

Escrever uma obra que envergonhasse os homens, pensava Roquentin, personagem que, na obra A Náusea de Sartre, buscava desesperadamente por um sentido glorificante à sua vida, e nessa busca acabava por não enxergar a potência criadora naquilo que lhe estava ao seu próprio alcance. É verdade que seria necessário ser tomado por grandes forças criadoras para criar uma obra dessa envergadura como forma de liberar forças da vida, mas criar uma vida para si se dá primeiramente a partir daquilo que somos, é acreditar na própria potencialidade daquilo que forma os nossos dias, inclusive, da própria tristeza a ser tomada como aspecto revelador daquilo que não está se compondo conosco. Todos nós podemos buscar composições mais intensificadoras, mas, obviamente, isso depende de uma escuta atenta àquilo que se compõe conosco e uma abertura à experimentação, tentar abdicar um pouco do Eu e respirar um pouco do fora, buscar por agenciamentos que podem nos compôr intensidades. Pode se produzir uma vida mais intensa com pedaços de poesia, de gentilezas, de passeios, de pequenas ações, de trechos e fragmentos de pessoas e livros, não sabemos, de antemão, aquilo que pode fazer o desejo cintilar novamente, enfim, não é necessário produzir uma obra que envergonhe os homens, como queria Roquentin, para criar sentidos em nome próprio.

Resistir nos interpela também ao desenvolvimento de uma ética que antes de tudo jamais se permita compactuar com o ódio e a destrutividade da diferença. Não por tolerar, mas por acreditar que a diferença introduz rupturas nas cristalizações de vida e amplia nossa probabilidade de compor modos de viver mais alegradores, é necessária para o processo desejante maquinar modos de existir. Práticas de resistência podem se dar na maneira como escolhemos habitar, se vestir, se relacionar, se comunicar, se alimentar, etc. Exigem uma postura atenta em tempo integral contra o fascismo que vai sorrateiramente se acumulando em nós como poeira, daí que é ilusão acreditar que exista vida sem luta.

O que fazer para não se render à feiura dos dias? Entre a vergonha de ser humano (e homem) diante da violência que toma os espaços sociais e políticos a nível global pode ser que nos sintamos impotentes, tristes demais para conseguir pensar em algo, surdos demais àquele momento em que uma pessoa querida esperava algo mais de nós, quem sabe um convite, uma palavra mais bonita, um elogio, uma sensibilidade que faltou, pode ser… mas recusamo-nos em sermos tragados como um cigarro industrializado pela impotência.

Recusando o sufocamento e a inércia diante dos fluxos ultra-velozes de medo e ódio que atravessam o planeta queremos insinuar a resistência como uma prática capaz de manter ativo o pensamento e o corpo em variação. Se colocar em variação, ajustado a um conhecimento capaz de perceber aquilo que melhor se compõe conosco, é desobstruir os fluxos desejantes para voltar a produzir intensidades, a intensidade é aquilo que impede a catástrofe que é também subjetiva. Recusamos a velocidade catastrofista do capitalismo e incitamos o desenvolvimento de velocidades que sejam as nossas (ver Tempo não é dinheiro, desperdice a vida), capazes de conjugar espaços-tempos desnaturalizados das cristalizações produzidas pelos enunciados de poder.

Não nos esqueçamos de que nos tornamos alvos fáceis e dóceis às forças opressivas quando deixamos de acreditar nesta vida e neste mundo, invente algo pelo qual acreditar nesta vida – nesta e não outra! -, uma verdade só sua, viver por alguém, um filho, um amor, viver por um bicho, por uma causa, pela literatura, pela filosofia, por um pôr do sol, pelo vento fresco das noites de outonos, uma paixão, não importa… pegando uns fios de pensamento nietzschiano quem tem um porquê viver suporta qualquer como.

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1. Frase de Deleuze que expressa uma necessidade da própria vida e do pensamento, para além dos aspectos de sofrimento físico. Citada de memória.

Sobre o autor

Adriel Dutra

Adriel Dutra

Antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, músicas e arte marginais, mas também psicólogo, filósofo, escritor de trechos errantes. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver e fotografar coisas que ninguém quer ver.